O globo, n. 31761, 22/07/2020. Opinião, p. 2

 

Saneamento é assunto das cidades

Marcelo Crivella

22/07/2020

 

 

A modernização do Marco Legal do Saneamento é, talvez, a principal reforma aprovada pelo Congresso Nacional neste século. Será possível resolver o maior passivo social do nosso tempo: a tragédia da falta de saneamento, que exclui 100 milhões de pessoas do serviço de esgotamento sanitário e 35 milhões do acesso à água tratada. A pandemia estampou nas telas das TVs os rostos de milhões de brasileiros desassistidos, até então invisíveis, e expôs a mais grave desigualdade da nossa sociedade.

A entrada em vigor do novo marco regulatório traz luz e esperança a todas as famílias cariocas. Ao estabelecer como meta principal a universalização do saneamento e exigir eficiência de todos os prestadores de serviço, esse tão esperado instrumento, enfim, ilumina as trevas da tragédia carioca e denuncia suas consequências nefastas.

Há em fase de consulta pública uma proposta do governo estadual para a concessão dos serviços de esgotamento sanitário e distribuição de água, cujo modelo mantém práticas inaceitáveis da atual concessionária, a Cedae, bem como contraria frontalmente os interesses do carioca, estando em óbvio conflito com o que determina o Novo Marco Legal do Saneamento.

A proposta parte de números base aleatórios e desobriga as futuras concessionárias do compromisso com a universalização dos serviços em comunidades pobres de todo o estado. Além disso, menciona o formato de região metropolitana, com o objetivo de obrigar a participação da capital, mas na verdade o modelo forma blocos com 42 municípios que estão fora dos limites metropolitanos e não têm interesse em comum com a nossa cidade. Aliás, a nova lei define “interesse comum” como compartilhamento de instalações operacionais, exige essa condição entre os municípios membros de regiões metropolitanas, o que não acontece no Rio de Janeiro, e ainda esclarece que a participação municipal é voluntária em todos os arranjos regionais que estabelece.

A prefeitura do Rio não foi ouvida durante a elaboração do modelo desenvolvido pelo BNDES por encomenda do governo estadual.

O governador, mesmo em flagrante vulnerabilidade política, enfrentando um processo de impeachment e sendo alvo de investigações e delações, pretendia, sem a legitimidade necessária, fazer a concessão à revelia do posicionamento da capital e obter outorgas bilionárias para pagar dívidas históricas contraídas por má gestão e corrupção. Entretanto, quem dá viabilidade econômica ao modelo são as contas pagas pelos cariocas.

É inaceitável que as futuras concessionárias pretendam arrecadar, aqui, cerca de 80% de sua receita e, com a garantia desses recursos, financiar investimentos em outras cidades sem qualquer interesse comum com a capital, enquanto, na cidade do Rio de Janeiro, menos de metade da população tem serviço de esgotamento sanitário.

A justificativa apresentada, e que não se sustenta, é que só com a participação da capital seria possível levar saneamento até cidades menores. Entretanto, não faltam exemplos em contrário, como é o caso de Niterói e Petrópolis, cidades médias, bem como outras pequenas da Região dos Lagos, que, organizadas em consórcio, fizeram suas concessões.

O município do Rio não medirá esforços para impedir quaisquer iniciativas que estejam em desacordo com o Novo Marco Legal do Saneamento. A prefeitura tem uma concessão de saneamento muito bem-sucedida na Área de Planejamento 05, que engloba vários bairros da Zona Oeste, e se prepara, amparada na nova lei, para fazer as demais em todo o Rio. A universalização do saneamento pode melhorar muito a qualidade de vida dos cariocas e ainda gerar empregos e aquecer a economia.

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Marcelo Crivella é prefeito do Rio de Janeiro