Correio braziliense, n. 20897, 10/08/2020. Mundo, p. 10

 

Efeito colateral das ruas

Rodrigo Craveiro 

10/08/2020

 

 

Pelo segundo dia consecutivo, Beirute foi sacudida por protestos e pela tentativa de invasão a prédios públicos. Ante a pressão das ruas e da comunidade internacional — que prometeu milhões em ajuda, mas exigiu reformas políticas no Líbano (leia nesta página) —, dois ministros do gabinete do premiê Hassan Diab apresentaram renúncia: Manal Abdel Samad (Informação) e Damianos Kattar (Meio Ambiente e Desenvolvimento Administrativo). Os manifestantes exigem a renúncia em massa do governo, o qual responsabilizam pelas explosões de 4 de agosto no porto de Beirute, que deixaram, pelo menos, 158 mortos, 6 mil feridos e 250 mil desabrigados. “Após a enorme catástrofe de Beirute, apresento minha demissão do governo. (…) Peço desculpas aos libaneses, não soubemos responder às expectativas”, declarou a ministra Manal. Pouco depois, Kattar também justificou a entrega do cargo sem deixar de fazer críticas ácidas ao Estado. “Diante desta enorme catástrofe e um regime estéril, que falhou em diversas oportunidades, decidi renunciar ao governo”, anunciou.

As autoridades libanesas são acusadas de negligência por permitirem o armazenamento de 2.750t de nitrato de amônio no depósito número 12 do porto. Ontem, o parlamentar reformista Michel Moawad também renunciou. “Basta! Sou um representante da nação libanesa, de acordo com a Constituição. Isso significa que represento os mártires e os feridos no massacre do porto de Beirute. Eu escutei suas lágrimas e sua dor. Vocês (povo) são a fonte da autoridade”, comentou o legislador, o sétimo a abandonar o Parlamento desde o dia das explosões.

“As pessoas tentaram invadir o Parlamento, hoje (ontem), e as forças de segurança usam munição letal para matar quem se aproximar do prédio. Os moradores de Beirute estão nervosos. Ao mesmo tempo, o establishment político não reconhece as demandas da população e tenta ganhar tempo”, relatou ao Correio Makram Rabah, professor do Departamento de História e Arqueologia da Universidade Americana Libanesa. O especialista acredita que uma revolução não será necessária para mudar o cenário do país. “Esse levante e a imensa demanda por mudanças serão ouvidos pela comunidade internacional. A pressão das ruas e do exterior, unidas, forçarão as autoridades a deixarem o poder e a enfrentarem a Justiça.”

Pressões

Por sua vez, o também libanês Bachar El Halabi — analista geopolítico sobre Oriente Médio e norte da África em Istambul — explicou que o levante nas ruas é continuação dos protestos de 17 de outubro. Na ocasião, os planos do governo para aumentar os impostos sobre a gasolina e o cigarro causaram a revolta popular. O movimento tornou-se um grito de basta ao regime sectário, à estagnação econômica e à alta taxa de desemprego, que chegava a 46%. “Ele transcendeu as falhas sectárias do país e denunciou o sistema confessional. Agora, que os ministros começaram a renunciar, parece que o governo não terá muito tempo mais. As pressões interna e externa tendem a aumentar de forma tremenda”, disse ao Correio. “A comunidade internacional deseja ver as reformas, e os manifestantes anseiam pela queda do regime. O governo não terá muito tempo, mas o presidente (Michel Aoun), seu partido (Movimento Patriótico Livre) e o Hezbollah continuam a protegê-lo. Eles são patronos do governo.”

El Halabi nega que a milícia xiita Hezbollah perderá influência no governo. “O movimento permanece como o ator mais forte do país, não apenas por estar bastante armado, mas por ser financiado pelo Irã”, comentou. No entanto, ele admite que a pressão internacional sobre o Hezbollah e sobre Teerã, além da situação de deterioração no Líbano, fazem com que a facção seja encurralada. “Temos de ter em mente que o Hezbollah pode adotar uma retaliação e prejudicar toda a nação”, advertiu.

A rede de TV Al-Jazeera  informou que as chances de resgatar sobreviventes nos escombros do porto são ínfimas. “Depois de três dias de operações de busca e de resgate, concluímos a primeira fase, que envolvia a possibilidade de encontrar pessoas com vida. À medida que técnicos trabalham no terreno, podemos dizer que temos poucas esperanças de encontrar sobreviventes”, anunciou o coronel Roger Khouri, do Exército libanês.

Ontem, alguns libaneses tiveram autorização para retornar aos seus lares, a fim de constatar a destruição. Foi o caso da arquiteta Karina Sukkar, que mora em um apartamento com vista para o porto, no bairro de Mar Mikhael. A varanda foi arrancada pela força da explosão.

Pontos de vista

Por Makram Rabah

Apoio do Hezbollah

“O governo do premiê Hassan Diab certamente ficará mais fraco com as renúncias dos ministros, mas não será extinto. Hassan e o presidente Michel Aoun contam com o apoio do Hezbollah. A tendência é de que eles aferrem ao poder e se tornem mais agressivos. A fragilidade do governo não se dá apenas por conta das renúncias, mas das manifestações nas ruas e da pressão da comunidade internacional. O presidente da França, Emmanuel Macron, foi bastante claro ao afirmar que não apoio o Estado do Libano, mas o povo libanês.”

Professor do Departamento de História e Arqueologia da Universidade Americana Libanesa

Por Bachar El Halabi

Pela queda do regime

“A explosão de terça-feira é a epítome do fracasso do sistema confessional dirigido pelos senhores da guerra sectários. Eles devem ser responsabilizados pela tragédia, especialmente a milícia libanesa Hezbollah, que completou a apropriação do Estado do Líbano e das instituições do país, nos últimos anos. Por consequência, os protestos prosseguiram com raiva e fúria, dessa vez pedem não somente reforma ou responsabilização pela explosão, mas a derrubada de todo o regime e de seus pilares de senhores da guerra, incluindo o Hezbollah.”

Analista geopolítico libanês e especialista em Oriente Médio e norte da África baseado em Istambul

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Bolsonaro convida Temer para missão de ajuda

10/08/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro convidou o ex-presidente Michel Temer para coordenar uma missão de apoio ao Líbano. O anúncio foi feito durante uma videoconferência mediada pelo líder francês, Emmanuel Macron, que contou com a participação de 15 doadores internacionais, entre eles, o presidente Donald Trump (Estados Unidos) e o rei Abdullah II (Jordânia). Em nota à imprensa, Temer se disse “honrado” como convite.“Quando o ato for publicado no Diário Oficial, serão tomadas as medidas necessárias para viabilizar a tarefa”, afirmou.

O Correio entrou em contato com a assessoria de Temer e recebeu a informação de que ele somente concederá entrevistas depois da publicação do ato presidencial.

“Nos próximos dias, partirá do Brasil, rumo ao Líbano, uma aeronave da Força Aérea Brasileira com medicamentos e insumos básicos de saúde reunidos pela comunidade libanesa radicada no Brasil. Também estamos preparando o envio, por via marítima, de 4 mil toneladas de arroz, para atenuar as consequências da perda de estoques de cereais perdidos na explosão”, disse Bolsonaro, durante a videoconferência. “Estamos acertando como governo libanês o envio de uma equipe técnica multidisciplinar para colaborar na realização da perícia da explosão. Convidei, como meu enviado especial e chefe dessa missão, o senhor Michel Temer, filho de libaneses e ex-presidente  do Brasil.” Bolsonaro destacou que “o Brasil é o lar da maior diáspora libanesa do mundo”. “Dez milhões de brasileiros de ascendência libanesa formam uma comunidade trabalhadora, dinâmica e participativa, que contribui, de forma inestimável, com nosso país. Por essa razão, tudo o que afeta ao Líbano nos afeta como se fosse nosso próprio lar e nossa própria pátria. Nesse momento difícil, o Brasil não foge à sua responsabilidade”, explicou. Segundo ele, o país presta assistência humanitária internacional e propõe ações de cooperação no médio e longo prazo,em benefício da sociedade libanesa.

O brasileiro também agradeceu aos organizadores pelo convite para participar da reunião virtual, “tão importante quanto urgente”.

“O momento requer a união de esforços internacionais, a fim de enfrentar as consequências das terríveis explosões na região portuária de Beirute. Apresento, uma vez mais, minhas condolências, em nome do povo e do governo do Brasil, às famílias enlutadas. A grande maioria de libaneses, mas, também, nacionais de outros países vitimados por essa tragédia”, declarou Bolsonaro. “Nossa solidariedade estende-se, igualmente, aos mais de 5 mil feridos, entre os quais alguns brasileiros, e aos mais de 250 mil desabrigados.” Esperança A videoconferência começou às 9h (hora de Brasília) e foi organizada pela França e pela Organização das Nações Unidas (ONU).

De acordo com Macron, a reunião simboliza “uma iniciativa urgente e esperança ao futuro” do Líbano. “O objetivo, hoje, é agir de forma rápida e eficaz para coordenar nossa ajuda em solo para que chegue o mais eficientemente possível para os libaneses”, declarou o francês, que visitou Beirute na quinta-feira. A comunidade internacional prometeu 250 milhões de euros em ajuda, mas cobrou reformas no país. “A assistência deve ser oportuna, suficiente e consistente com as necessidades do povo libanês (….) e entregue diretamente à população libanesa com máxima eficiência e transparência”, afirma um comunicado assinado pelos 15 líderes participantes do encontro virtual.