Correio braziliense, n. 20887 , 31/07/2020. Política, p.2

 

"Inteligência" para espionar opositores

Renato Souza

31/07/2020

 

 

PODER » Ministério da Justiça admite que monitorou servidores contrários ao governo, mas diz ter sido atividade distinta de investigação. MPF dá 10 dias ao Executivo para explicar ato deflagrado sem inquérito em andamento ou determinação do Judiciário

Por meio da Secretaria de Operações Integradas (Seopi), o Ministério da Justiça colocou em prática um plano de monitoramento de 579 servidores da área de segurança pública que se declaram opositores do governo. Os alvos fazem parte de movimentos autodenominados antifascistas, formado por policiais militares e civis. Agentes federais também integram o grupo, que está na mira das diligências deflagradas sem inquérito ou pedidos do Judiciário. Em nota, o Ministério da Justiça afirma que a prática não se tratou de investigação, mas, sim, de atividade de inteligência.

Após o caso vir à tona, o Ministério Público Federal pediu explicações do governo sobre o ato, que relembra práticas usadas pelo regime militar. Entre as pessoas monitoradas estão três professores universitários. O Executivo tem 10 dias para atender à determinação, feita pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão do Rio Grande do Sul, Enrico Rodrigues de Freitas. A atividade suspeita em uma das pastas da Esplanada foi revelada pelo UOL e, de acordo com o portal, foi produzido um dossiê com posicionamentos e endereços nas redes sociais de servidores estaduais e federais.

Apesar de alegar tratar-se de um trabalho técnico, o Ministério da Justiça teria repassado as informações a órgãos políticos, e não só de segurança, o que abre espaço para que servidores sofram retaliações ou punições de caráter ideológico e político. Em nota à imprensa, a pasta afirmou que “cabe à Diretoria de Inteligência, que hoje integra a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, como atividade de rotina, obter e analisar dados para a produção de conhecimento de inteligência em segurança pública e compartilhar informações com os demais órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência”.

O ministério rebateu as acusações de irregularidades e perseguição e disse que não foi produzido dossiê contra cidadãos, mas que as ações tiveram como intuito prever a prática de crimes. “A atividade de inteligência não é atividade de investigação. Toda atividade de inteligência da Seopi se direciona, exclusivamente, à prevenção da prática de ilícitos e à preservação da segurança das pessoas e do patrimônio público”, frisou o texto. “Não há nenhum procedimento instaurado contra qualquer pessoa específica no âmbito da Seopi, muito menos com caráter penal ou policial. Não compete à Seopi produzir ‘dossiê’ contra nenhum cidadão nem mesmo instaurar procedimentos de cunho inquisitorial.”

Punição

Entidades estranharam o fato de o governo monitorar pessoas por pedirem mais respeito à democracia. Outro fato criticado por elas é uma norma editada pela Controladoria-Geral da União (CGU) que regula a punição para servidores públicos que manifestarem, por meio das redes sociais, “opinião contrária” ao órgão em que trabalha. “Uma simples opinião de um servidor nestes canais (redes sociais), especialmente quando identificadas a sua função e lotação, pode, a depender do seu conteúdo, desqualificar um órgão, gerar graves conflitos ou, em situações extremas, dar azo a uma crise institucional”, destaca um trecho do texto publicado pelo órgão.

Em nota, a CGU negou tentativa de censura e ressaltou que os atos que podem ser punidos são os que “extrapolam” limites. “É importante esclarecer que a CGU não tem qualquer restrição à realização de críticas por parte dos agentes públicos. O que a CGU considera como passível de apuração disciplinar são aqueles atos que extrapolem os limites do razoável.”

Pedido de inquérito

No último fim de semana, a Rede Solidariedade apresentou ação no Supremo Tribunal Federal para pedir abertura de inquérito com o objetivo de investigar a elaboração do dossiê. A legenda afirma que a ação do Ministério da Justiça se trata de perseguição política.

Desvio de atribuição

Criada pelo ex-ministro Sergio Moro para integrar operações policiais contra o crime organizado e redes de pedofilia, a Seopi mudou de atribuições após André Mendonça assumir o Ministério da Justiça. O titular da pasta solicitou investigação completa sobre movimentos que poderiam colocar em risco a “estabilidade política” do governo.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Entidades ciram regime militar

Renato Souza

31/07/2020

 

 

A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) manifestou-se pela liberdade de pensamento e disse ver com preocupação tanto a portaria da Controladoria-Geral da União (CGU) quanto eventual dossiê contra servidores produzido pelo Ministério da Justiça. A entidade reiterou que “a livre expressão do pensamento é garantida pela Constituição, lei máxima deste país, e que os servidores públicos não abrem mão desse direito quando são aprovados em concurso público”. “A Fenapef tem compromisso com todos os policiais federais, independentemente de sua linha de pensamento, e estará alerta para que nenhuma retaliação ou injustiça possa ser perpetrada. Isso posto, reforça que tem a plena convicção de que, em um regime democrático, com instituições consolidadas, nenhuma ilegalidade será cometida.”

á o Movimento Policiais Antifascismo comparou os atos aos praticados durante a ditadura militar. “Enquanto trabalhadores que compreendem que a liberdade de pensamento e de associação não são crimes, enxergamos como inadmissível o fato de ainda existirem, no seio do Estado democrático de direito, estruturas governamentais que se prestam a reeditar ações similares às dos não memoráveis Dops (Departamentos de Ordem Política e Social) e Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna), se afigurando enquanto instrumentos de perseguição política a opositores, financiados com recursos do povo brasileiro”, afirmou.

Em nota nesta semana, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirmou que “se trata de uma medida arbitrária, que remete aos tempos da ditadura militar e cujo intuito claro é o de intimidar e constranger servidores públicos da área de segurança que se posicionam contra as incontáveis ações e declarações beligerantes e radicais do atual presidente da República”. “A integração dos órgãos de segurança, missão primeira da Seopi, não pode ser aparelhada por uso político-ideológico do governo”, continuou. Outro trecho destacou: “É inaceitável, depois de décades de redemocratização, que o Brasil tenha de enfrentar arbitrariedades de cerceamento do livre pensamento de cidadãos por meio de dossiês intimidatórios, gestados nos porões da administração pública federal, que só encontram paralelo em regimes democráticos”.

Num debate virtual, ontem, que reuniu parlamentares e policiais, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) destacou que investigação contra cidadãos que não praticaram crimes viola a legislação. “Este senhor, ministro da Justiça, e o seu patrão, Jair Bolsonaro, estão rasgando o texto constitucional. Estão rasgando o mais sensível dos princípios elevados à categoria de cláusula pétrea. No artigo 5º da Constituição, diz que todos são iguais perante a lei”, reprovou.

Frase

"Enxergamos como inadmissível o fato de ainda existirem, no seio do Estado democrático de direito, estruturas governamentais que se prestam a reeditar ações similares às dos não memoráveis Dops e Doi-Codi”

Trecho de nota do Movimento Policiais Antifascismo