O Estado de São Paulo, n.46256, 09/06/2020. Política, p.A5

 

Bolsonaro: 'Protestos são o grande problema'

Julia Lindner

09/06/2020

 

 

Após atos contra governo, presidente diz que ‘há doutrinação’ formando militantes

Patrimônio. Rampa do Palácio do Planalto foi alvo de ataque após manifestante jogar tinta

Um dia depois de protestos serem registrados em 11 capitais do País e no Distrito Federal, o presidente Jair Bolsonaro disse ontem que as manifestações contrárias ao governo são “o grande problema do momento”, na sua visão. “Estão começando a colocar as mangas de fora”, disse o presidente a apoiadores, no Palácio da Alvorada.

Pressionado pela crise causada pela pandemia do novo coronavírus, cuja escalada crescente de mortes já vitimou mais de 37 mil brasileiros, Bolsonaro disse que existe “muito interesse” no País. Por isso, na visão do presidente, há uma “doutrinação em cima do Brasil, uma massificação, cada vez mais formando militantes”.

Bolsonaro não disse a quem se referia, mas voltou a criticar o Supremo Tribunal Federal (STF) e afirmou que sua intenção é “arrumar as coisas devagar”, a começar pela primeira indicação que fará para uma vaga na Corte. “Vou indicar o primeiro ministro do STF agora em novembro. O primeiro. A gente vai arrumando as coisas devagar aqui”, disse, em referência ao mês em que o decano da Corte, Celso de Mello, vai se aposentar. No ano seguinte, outra vaga se abrirá com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello.

A atuação de ministros da Corte, em especial do decano, tem sido alvo de ataques do Palácio do Planalto por impor limites a medidas tomadas pelo chefe do Executivo e dar andamento a investigações que miram Bolsonaro e seu entorno. Ontem, Celso de Mello deu mais 30 dias para o inquérito que apura se houve interferência do presidente na Polícia Federal ser concluído.

“Como eu peguei esse país? Vocês têm razão no que pleiteiam e no que falam. Eu peguei um câncer em tudo o que é lugar. Um médico não pode de uma hora para outra resolver esse problema todo. O grande problema do momento é isso que vocês estão vendo aí um pouco na rua ontem (anteontem), estão começando a colocar as mangas de fora”, disse o presidente a apoiadores que o aguardavam na saída da residência oficial, pela manhã.

Responsabilidade. Na ocasião, o presidente repetiu a narrativa de que a responsabilidade sobre medidas de enfrentamento ao coronavírus é de governadores e prefeitos por determinação do Supremo. “O STF deu todo o poder para gerirem esse tipo de problema, eu apenas injetei bilhões nas mãos deles. E alguns ainda desviam. Alguns”, disse. Diferentemente do que diz o presidente, o Supremo assegurou a Estados e municípios autonomia para tomar medidas que tenham como objetivo conter a propagação da doença, mas não eximiu a União de realizar ações e de buscar acordos com os gestores locais.

Tinta. Pouco depois de Bolsonaro falar com apoiadores, um manifestante jogou uma lata de tinta vermelha em direção ao Palácio do Planalto, sujando parte da rampa que dá acesso à sede do governo federal. Funcionários foram acionados para retirar a tinta vermelha.

O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) afirmou, em nota, que o responsável por jogar a tinta foi identificado e “entregue às autoridade policiais para as medidas cabíveis”. O GSI disse que o prédio do Palácio do Planalto é um bem público, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e foi vítima de um ato de “vandalismo”.

No início da tarde, Bolsonaro foi com auxiliares até o topo da rampa do palácio. Ele observou o local, sem falar com a imprensa.

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Democracia e manifestações de rua

Michel Temer

09/06/2020

 

 

A manifestação contra o governo ou a seu favor deriva do ‘pluralismo político’. É exercício democrático

Logo de saída, no artigo 1.º da Constituição Federal, o Brasil é definido como “Estado Democrático de Direito”. Esta dicção tem especial significado. É que na ciência política Estado Democrático e Estado de Direito se equivalem. Aliás, quando se abandonou o Estado Absolutista, surgiu o Estado de Direito. Por que faço esta afirmação? Precisamente para revelar a ênfase na democracia.

Saímos, em 5 de outubro de 1988, data da nova Constituição, de um sistema centralizador e autoritário. Quisemos, e demos, relevo à democracia, que, com licença para a obviedade, significa “governo do povo”. Daí termos usado a expressão que abre a Constituição Federal logo no seu primeiro artigo. Impõe-se verificar quais são os desdobramentos desse dispositivo para verificar se efetivamente vive-se na democracia.

De logo se registra que o inciso V do mesmo artigo 1.º sustenta que um dos fundamentos do Estado é “o pluralismo político”. Portanto, a pluralidade de opiniões é marca do nosso sistema, já que política (do grego polis) é a arte de governar. Plural, como é, enseja o debate de opiniões. De ideias e posições programáticas. E, naturalmente, de manifestações.

De onde vem o direito à manifestação? Do artigo 5.º, inciso XVI, que preceitua “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

O que ressai desse preceito é que manifestações podem dar-se “nas ruas” já que alude a “locais abertos”. Apenas é preciso manter a ordem. Daí a necessidade de prévio aviso e com pessoas desarmadas. E desde que não impeçam outra reunião no mesmo local que fora anteriormente comunicada à autoridade. Especialmente por tratar-se de movimento “pacífico”, a lei e a prudência administrativas recomendam que não se deve e não se pode autorizar a reunião de grupos divergentes no mesmo espaço. Aliás, quando os governos determinam e autorizam as reuniões em locais diversos não estão fazendo mais do que cumprir a Constituição.

Assim, ao lado da liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5.º, inciso IV), da liberdade de consciência e de crença, a liberdade dos cultos religiosos (art. 5º, VI), a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5.º, VIII), a estas somada a liberdade de manifestação nas ruas, revela-se concretamente a democracia.

A essa altura podemos indagar: podem ser apontados como terroristas os que se manifestam na rua? Vejamos o que é “terrorismo” no texto constitucional. De logo, é crime inafiançável, dentre outros, o terrorismo. Está ao lado dos crimes: prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, assim como os crimes hediondos. Por que são crimes? Porque agridem o sistema normativo e, por isso, são apenáveis. Adicione-se a essa concepção o artigo 4.º, inciso VIII, da Constituição que repudia “o terrorismo e o racismo”.

Qual pode ser o crime de manifestação pública autorizada no Texto Magno que cumpriu os requisitos que o próprio texto exige? Nenhum. A manifestação contra o governo ou a seu favor deriva do “pluralismo político” a que antes aludimos. É exercício democrático. Pode, sim, ser sancionado se houver desordem deliberadamente praticada, conflitos que gerem ferimentos. Mas aí são outras hipóteses delitivas, puníveis por outras razões legais. Ou seja, não é a manifestação em si que é crime, nem pode ser classificada como terrorista. O que pode haver é apuração de eventual penalidade sobre “a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” nos dizeres do artigo 5.º, inciso XLIV. Daí porque inadequados juridicamente os movimentos que pregam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Convém anotar, ainda, que o terrorismo pressupõe clandestinidade, movimento subterrâneo, às escondidas. Nada que diga respeito a manifestações públicas, a céu aberto.

A tranquilidade do País depende do cumprimento rigoroso da Constituição. E esta prega a paz e harmonia entre as pessoas e as instituições.

EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA