O globo, n. 31702, 24/05/2020. Especial Coronavírus, p. 17

 

Anticorpos de cavalo

Ana Lucia Azevedo

24/05/2020

 

 

Testes com soro contra a Covid—19

Numa fazenda em Cachoeiras de Macacu, no Estado do Rio, começa esta semana a primeira etapa de testes para um novo tratamento contra a Covid-19. Trata-se de um soro, produzido a partir do plasma com anticorpos de cavalos e semelhante aos usados com sucesso contra a raiva e o tétano. A estratégia não é nova, mas renova a esperança de tratar com eficiência, em alguns meses, pacientes com o novo coronavírus. Se os testes derem certo, o soro hiperimune poderá chegar a pacientes e profissionais de saúde expostos ao coronavírus em três ou quatro meses, estima o coordenador do projeto, Jerson Lima Silva, professor titular do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Faperj.

— Impossível dizer em quanto tempo teremos o soro porque começamos agora, mas há motivos para o otimismo —diz Lima Silva. As vantagens do método são a rapidez nos testes e na produção, a possibilidade de produzir em grande escala anticorpos padronizados e o baixo custo. Anticorpos monoclonais (sintetizados e específicos contra uma dada proteína) em testes na China e nos EUA, por exemplo, têm preço proibitivo.

Já o soro convalescente, doado por pessoas que se recuperaram da Covid-19, está em teste no tratamento de pacientes graves no Rio, mas é artesanal e não pode ser produzido em grande quantidade.

—O soro hiperimune de cavalos pode ajudar até que uma vacina e remédios estejam disponíveis. É uma estratégia antiga, mas que funciona — diz Lima Silva, um dos cientistas mais premiados do Brasil. Totalmente desenvolvido no Estado do Rio, o tratamento terá acesso garantido aos brasileiros. Hoje, o único protocolo de tratamento contra a Covid-19 estabelecido pelo Ministério da Saúde, com cloroquina e hidroxicloroquina, não tem aval da comunidade científica e de sociedades médicas por falta de comprovação de sua eficiência e risco de efeitos colaterais graves.

O desenvolvimento de soro com anticorpos integra um projeto ambicioso contra aC ov id -19, que inclui vacina, remédios e testes de diagnóstico, e reúne a UFRJ, o Instituto Vital Brazil, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Estão em teste duas formas de estimulara produção de anticorpos. A primeira, mais fácil de produzir em série, é com antígenos da proteína S do Sars-Cov-2, chave que o vírus usa para invadir as células humanas. Os anticorpos funcionarão como “durepox” e vão trancar aporta, explica Luís Eduardo Ribeiro da Cunha, vice-presidente do Vital Brazil, que coordena a inoculação dos cavalos e a produção de soro.

A segunda estratégia é baseada no uso do coronavírus que é inativado, na UFRJ ena Fio cruz, através de uma gente químico ou físico que o torna incapaz de infectar células e se replicar. Porém, ainda preserva as proteínas que podem estimular uma reação do sistema de defesa.

Essa estratégia, em tese, pode oferecer resposta mais eficaz do sistema imunológico, mas tem limitações de produção porque necessita de um laboratório de segurança nível 3 de grande escala, cuja falta também é obstáculo ao desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 no país. Na semana passada, Ribeiro da Cunha concluiu na fazenda do Vital Brazil, em Macacu, a seleção de cavalos, animal padrão para a produção de soros hiperimunes no país. Cinco animais receberão a proteína S do coronavírus e outros cinco, o vírus inativado. Dez animais podem produzir soro para 100 mil pessoas em um ano.

PRÓXIMAS FASES

Jerson Silva explica que o soro deverá ser dado a doentes em estágio intermediário. O soro atua sobre a multiplicação do vírus, mas não teria impacto quando o coronavírus já deflagrou uma reação descontrolada do sistema imunológico e a pessoa está com inflamação generalizada grave.

Se os cientistas tiverem sucesso e os cavalos de fato produzirem anticorpos, o que costuma acontecer em 15 dias, a próxima fase será analisar os anticorpos em laboratório para verificar se eles neutralizam o coronavírus. Também vão investigar se a quantidade de anticorpos é suficiente. Neutralizantes e em grande número, os anticorpos serão usados no soro. Lima Silva explica que a etapa seguinte será testar o soro em pacientes, em estudos controlados e que precisam ter a autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Segundo ele, todas as instâncias têm sido muito ágeis para analisar e aprovar etapas de pesquisa.

O hematologista e oncologista Daniel Tabak, integrante da comissão científica que assessora o governo do Rio, diz que o soro pode ser uma opção para impedir a piora da doença. Mas ressalta que a fase de avaliação do risco de reação é fundamental. Ele cita estudos recentes sobre o papel dos linfócitos, e explica que os pacientes poderiam ser selecionados por meio de exames de sangue:

— Pessoas que apresentam baixa contagem de linfócitos no sangue (linfopenia), em geral, têm pior prognóstico. Eles poderiam ser candidatos ao tratamento mais precoce com o soro.