O globo, n. 31702, 24/05/2020. Especial Coronavírus, p. 13

 

‘Escolhas de sofia’ diárias 

Felipe Grinberg

Sílvia Amorim

Suzana Corrêa

24/05/2020

 

 

Médicos relatam drama de decidir quem sobreviverá

O dilema que já assombrou médicos na Itália vem sendo agora enfrentado por profissionais de saúde em várias cidades do Brasil. Diante do colapso em hospitais públicos, com menos vagas de UTI do que o necessário, quem está na linha de frente do combate à Covid-19 precisa escolher quem terá direito a um respirador — um passaporte para a chance de sobreviver. Treinado para salvar vidas e ainda sob o impacto de ter visto um idoso, que precisava do aparelho, morrer sentado em uma cadeira, no mês passado, pois nem macas para todos os pacientes havia na unidade, um cirurgião que trabalha em dois grandes prontos-socorros de Manaus diz se sentir “conivente com assassinato” a cada plantão. Há duas semanas , o médico, que pediu para não ter o nome revelado, enfrentou outra situação dramática. Um homem, com quadro gravíssimo de insuficiência respiratória, precisava de respirador, mas não havia mais equipamento disponível no hospital.

A equipe decidiu fazer um tratamento paliativo para dor, mas descobriu que a morfina também estava em falta. O paciente morreu, horas depois, sem receber qualquer medicação para aliviar seu sofrimento. Traumatizado por ter que fazer quase diariamente uma “Escolha de Sofia” (uma referência ao romance do americano William Styron em que uma mãe polonesa precisa escolher qual filho vai ter a chance de sobreviver aos horrores do nazismo), o médico pediu demissão de um dos empregos na rede estadual. Foi a maneira que encontrou para diminuir o estresse:

— Não sou o único. Muitos estão deixando os plantões para ir a outros estados (com melhores condições) ou para a rede privada. No dia em que o velhinho morreu sentado na cadeira, percebi que não aguentava mais.

TRABALHO EM EQUIPE

Em Recife, em Pernambuco, estado com 95% deleitoso c upados, o hematologista Elton Menezes tem procurado dividirope soda decisão. A ose deparar, no Dia das Mães, com duas vítimas de Covid, uma mulher de 70 anos, fumante, e um homem de 40, ambos em estado grave, disputando o único respirador disponível no hospital, ele convocou toda a equipe para opinar.

— A primeira coisa que vem nasuac abeça és eéj usto escolher apenas pela idade. Ela merecia menos? Chamei enfermeiros, fisioterapeutas, outros médicos e decidimos juntos que o paciente mais novo aguentaria sem a ventilação por um pouco mais de tempo. Conseguimos um aparelho para ele depois, mas até esse final feliz acontecer foram sete horas de aflição — conta Menezes, que se vê às voltas com episódios de ansiedade.

—Vou angustiado para os plantões, pensando que vou passar pela mesma situação. Essas decisões ficam na pele. Da mesma cidade, a médica Rousiane Cavalcanti, que trabalha na rede estadual e atua como voluntária em um hospital de campanha, diz que a falta de vagas sempre existiu no SUS, mas que, agora, se tornou ainda mais grave:

— Aumentou o caos em um serviço que já estava saturado. Os plantões têm sido devastadores. Exaustivo é uma palavra generosa para descrevê-los. Rousiane descreve como é dolorosa a sensação de fracasso quando um paciente, a quem ela não conseguiu dar um respirador, morre:

— Se recuperar dessa escolha dilacera você, porque temos que voltar para o hospital sabendo que vai voltar a acontecer.

DORMIR, SÓ COM REMÉDIO

Infectologista num hospital em Santarém, no Pará, a médica E. P. teve que recorrera remédios para dormir depois de uma semana de trabalho desgastante, principalmente emocionalmente. No último domingo, ela conseguiu apenas uma vaga em UTI, mas tinha dois pacientes à espera de leito —um deles era avó de uma colega de trabalho. Ela preteriu aparente da profissional de saúde e encaminhou outro doente, que, em estado crítico, não teve condições de ser transportado. Por conta disso, a idosa acabou ganhando a vaga. Mas morreu no dia seguinte.

—Trabalhando de domingo adomingo nesse estresse, tive que tomar medicação para dormir — diz a médica que, dois dias antes, teve que optar entre o avô de um grande amigo e uma grávida de 21 anos, no sétimo mês de gestação. A vaga foi para a jovem, que morreu junto do bebê. — Sou controlada e resolutiva no trabalho. Mas em casa, quando ninguém está vendo, agente desaba. Todo diate mosque decidir quem vai vive requem vai morrer. Não dá para salvar todos —lamenta.

Em Fortaleza, uma médica que está no front diz que a tragédia vai além:

— Não conseguimos nem viver o luto completo de cada perda, porque já tem que passar para o próximo paciente que está ali e pode ser salvo por aquele aparelho ou vaga. É desgastante.

NOTA DETERMINA VAGA

No Rio de Janeiro, onde, na sexta-feira à noite, 339 pessoas aguardavam por uma vaga em UTI, uma médica que trabalha no Hospital Ronaldo Gazolla, referência para o tratamento de Covid-19, afirma nãot erse deparado coma falta de respiradores, já que a unidade só recebe pacientes quando há vagas. Lá, conta, o drama é outro. Não há hemodiálise para todos.

— Temos um número restrito de aparelhos e precisamos revezar. Na semana passada, havia seis aparelhos para todo o hospital, e dez pacientes precisando, somente em um dos cinco CTIs. Quando vemos um paciente extremamente grave, infelizmente, às vezes, agente nem tenta. A Secretaria municipal de Saúde do Rio negou, em nota, que não haja aparelhos suficientes no hospital. O Conselho Federal de Medicina elaborou em 2016 um documento que estabelece prioridades na admissão em UTIs de pacientes “que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação”. A resolução não especifica, no entanto, que critérios devem ser levados em conta e passa para os gestores da área de saúde de cada estado a responsabilidade de elaborar protocolos próprios.

Por conta dessa brecha, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) passou a discutir um documento que norteie profissionais de saúde. Ele se baseia numa pontuação que leva em conta a gravidade deseis áreas, como respiratória e cardiovascular, e a presença de doenças preexistentes. Quanto menor for o resultado, mais chances o paciente tem de conseguir um leito. O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco adotou normas semelhantes às da Amib e elaborou uma ferramenta online para os médicos, que calcula a pontuação de pacientes.

— O médico vai poder usar o escore para se embasar. Ele tem autonomia de decisão, mas estará seguro. Dá um respaldo — diz Zilda Cavalcanti, presidente do Conselho de Pernambuco. No Rio, documento semelhante aguarda aprovação da Secretaria de Saúde. O Ministério da Saúde informou em nota que protocolos de regulação assistencial e de classificação de risco para triagem para leitos de UTI ou outra necessidade urgente já são rotineiramente adotados nos serviços de saúde.

“Chorei a semana inteira por ter que tomar essa decisão. E se recuperar dessa escolha dilacera você, porque temos que voltar para o hospital sabendo que vai voltar a acontecer” 

Rousiane Cavalcanti