O globo, n. 31702, 24/05/2020. País, p. 9

 

O abraço militar à pauta bolsonarista

Marco Grillo

24/05/2020

 

 

Nomeações e acenos ao governo na crise do Covid-19 expõem papel ambíguo das Forças Armadas, dizem especialistas 

DIVULGAÇÃOCloroquina. Laboratório Químico Farmacêutico do Exército aumentou produção de remédio, defendido por Bolsonaro

 O crescimento da nomeação de militares para postos estratégicos do governo federal, inclusive com cargos no Ministério da Saúde, abriu espaço para adoção de protocolos contra a Covid-19 mais alinhados ao presidente Jair Bolsonaro e expôs uma ambiguidade do papel das Forças Armadas, afirmam estudiosos. Ao mesmo tempo em que comandantes e o ministro da Defesa pontuam o papel institucional e de serviço ao Estado, e não ao governo Bolsonaro, os espaços na atual gestão são ocupados em velocidade cada vez maior por militares. Visto em uma primeira fase do governo como capazes de limitar arroubos radicais de Bolsonaro, o núcleo militar agora também exerce papéis mais associados à chamada ala ideológica, como a defesa da cloroquina no tratamento contra a Covid-19 —não há evidência científica da eficácia do remédio. Segundo o “Painel estatístico de pessoal”, do Ministério da Economia, há 2.067 servidores de Exército, Marinha e Aeronáutica requisitados por outros setores do governo federal.

O número é 7% superior ao do ano passado e 12% maior que o de 2018, último ano de Michel Temer. Na comparação com os períodos finais das gestões petistas, o crescimento é de 16% em relação a março de 2016 (dois meses antes da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff ) e de 48% sobre 2010, último ano de Luiz Inácio Lula da Silva. Hoje há nove ministros com origem militar, além de funções ocupadas em escalões inferiores. Em relação ao desenho inicial, quando o comando de áreas como Infraestrutura, Ciência e Tecnologia e Minas e Energia já havia sido delegada a militares, a expansão ocorreu para três setores essenciais ao governo.

Ainda em 2019, a articulação política deixou de ser responsabilidade de um civil (Onyx Lorenzoni, então ministro da Casa Civil) e passou a ser função do general Luiz Eduardo Ramos, que assumiu a Secretaria de Governo e incorporou a atribuição. Em 2020, a expansão chegou à coordenação da atuação dos ministérios, com a escolha do general Braga Netto para a Casa Civil, e à liderança no combate ao coronavírus, consolidada com a nomeação do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde.

EFEITO TRUMP

O embarque a ala militar na linha de frente do combate à pandemia abriu caminho para permitir o uso de cloroquina em casos leves da doença, prática que encontrou resistência nos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, ambos médicos. Um dos militares nomeados para a pasta elogiou o fato de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tomar o medicamento. Já o Laboratório do Exército entrou na linha de produção e entregou 1,25 milhão de comprimidos, sob aprovação do presidente. O cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Ebape/FGV, avalia que, em um primeiro momento, preencher ministérios com militares foi uma saída achada por Bolsonaro em um cenário de poucos quadros no PSL, partido pelo qual foi eleito, e sem disposição de repartir espaço com outras legendas. Além disso, poderia se beneficiar do prestígio das Forças Armadas junto à população —em julho de 2019, o Datafolha mostrou que 42% dos brasileiros “confiavam muito” nas instituições militares — e fortalecer o discurso contra a política tradicional.

Na outra ponta, as Forças Armadas, movidas também por afinidade ideológica e a sensação de ter uma “missão” a cumprir, viram uma reforma da Previdência mais branda ser aprovada para a categoria e o orçamento do Ministério da Defesa para 2020 ser protegido de possíveis contingenciamentos. O professor, que classifica a situação das Forças Armadas como de “extrema ambiguidade”, avalia que um eventual agravamento da crise política pode tornar a situação ainda mais complexa:

—Com o esforço permanente de envolver as Forças Armadas no governo, uma crise que leve a um indício de processo de destituição legal pode ocasionar manifestações políticas de setores subalternos das Forças, ao arrepio do que diz o Alto Comando. É a pior coisa para uma instituição que preza pela disciplina.

DESGASTE DA IMAGEM

O cientista político Rafael Cortez, sócio da consultoria Tendências, observa que o incremento da presença de militares acontece em um momento de desgaste político intenso, com a saída de ministros populares — casos de Sergio Moro (Justiça) e Mandetta —, além de investigações sobre a suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Para Cortez, a identidade entre pontos de vista das Forças Armadas e parte do discurso bolsonarista também alavanca a participação militar no governo.

—O ponto principal da estratégia é elevar o custo de um movimento que leve a um processo de interrupção de mandato por meio do impeachment —diz Cortez, que vê uma “tensão” entre o mundo militar e o político. Para o cientista político Christian Lynch, professor do Iesp/Uerj, a associação pode gerar prejuízos para as Forças Armadas a médio prazo:

—Conforme a imagem do governo vai queimando, vai levando junto a do Exército, que está colado com o bolsonarismo. Pode ser um caminho sem volta —analisa.

Já o cientista político Fernando Schuler, professor do Insper, avalia que as nomeações de estão mais relacionadas à “zona de conforto” do presidente:

—Há uma cultura de hierarquia e disciplina. No caso de profissionais da área científica, por exemplo, com mais autonomia, existe risco maior de contestação.