Valor econômico, v.21, n.5035, 03/07/2020. Brasil, p. A5

 

Reunião tenta selar a paz entre Brasil e França

Assis Moreira 

03/07/2020

 

 

Brasil e França vão tentar atenuar as tensões para recolocar a relação bilateral nos trilhos da normalidade, com a primeira reunião bilateral de alto nível em um ano prevista para a próxima semana, após confrontos entre os presidentes Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron.

O Valor apurou que os setores privados dos dois lados pressionaram em Brasília e em Paris para que os governos moderassem as tensões. Em videoconferência cujo anfitrião será a França, na próxima terça-feira, as diplomacias passarão em revista a densa agenda bilateral, reconhecendo que é complicado brigar diante do tamanho dos interesses cruzados. Os franceses têm mais investimentos no Brasil que na China, dizem fontes.

A relação bilateral entre os dois antigos parceiros azedou e caiu ao mais baixo nível desde meados do ano passado, quando, em pleno incêndio na Amazônia, que chamou a atenção do mundo inteiro, Bolsonaro e Macron deflagraram uma fase de recriminação mútua.

Macron cobrou proteção da floresta e levou o tema para a cúpula do G-7, reunindo as economias mais ricas do mundo. Bolsonaro reagiu acusando Macron de “mentalidade colonialista” e recusou ajuda da França e do G-7, por entender que ela colocava em dúvida a soberania brasileira sobre o território amazônico.

Depois, em comentário no Facebook, ele partiu para a deselegância explícita, zombando da primeira-dama francesa, Brigitte Macron, 24 anos mais velha que o marido, indiretamente endossando uma crítica de um seguidor a seus atributos físicos. Macron reagiu dizendo esperar que os brasileiros “tenham logo um presidente que se comporte à altura” do país.

O presidente francês tampouco engoliu a desfeita de Bolsonaro ao ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian. O chefe da diplomacia francesa tinha em Brasília uma audiência no dia 29 de julho com Bolsonaro. Minutos antes do encontro, ele foi avisado de que o presidente brasileiro não tinha mais horário disponível para ele. Pouco depois, Bolsonaro apareceu num live nas redes sociais cortando o cabelo.

Nesta semana, Macron voltou a alvejar indiretamente o Brasil, dizendo que tinha interrompido o acordo União Europeia-Mercosul e defendendo a criação do “crime de ecocídio”, ou seja, crime contra o ambiente, que deveria ser julgado pela Corte Penal Internacional. Lembrou que ele foi um dos primeiros dirigentes políticos a ter usado esse termo “quando a Amazônia queimava, há alguns meses”.

A França é um dos maiores investidores estrangeiros no Brasil. Dados brasileiros mencionam € 30 bilhões de investimentos franceses no país. Já o Banque de France, o BC francês, publicou em 2018 que companhias francesas tinham € 21 bilhões investidos na China e € 23,7 bilhões no Brasil. Cerca de 900 subsidiárias francesas estão instaladas em território brasileiro. Os franceses também têm superávit importante na balança comercial.

A parceria cobre todas as áreas: econômica, militar, espacial, energética, educativa, cultural, transfronteiriça, ajuda ao desenvolvimento em terceiros países. A França transfere tecnologia, um diferencial apreciado pelo Brasil, na construção de submarinos e supercomputadores, por exemplo.

Pressões dos setores privados foram seguidas de sinalizações dos dois governos. No início deste ano, o novo embaixador brasileiro em Paris, Luís Fernando Serra, ouviu interesse francês em retomar um “diálogo positivo”. Em meados de maio, ao apresentar suas credenciais a Bolsonaro, a nova embaixadora francesa, Brigitte Collet, ouviu mensagem parecida e convite para visitar a Amazônia e tirar suas próprias conclusões.

Assim, em meio à aparente concordância em “baixar a bola”, foram construídas as condições para a retomada de consulta diplomática. Como a pandemia não permite a viagem a Paris, o diálogo será mesmo por videoconferência. O Brasil será representado pelo secretário de Negociações Bilaterais no Oriente Médio, Europa e África, embaixador Kenneth Felix Haczynski da Nóbrega.

Muito vai depender do clima de cada lado. Em todo caso, Bolsonaro não dá sinais de mudar suas posições em diferentes temas que alimentam enorme rejeição no exterior. E Macron procura ser particularmente mais “ecológico” diante do avanço do Partido Verde sobre sua base eleitoral.

Na relação do Brasil com a Europa como um todo estão no topo da agenda o meio ambiente e o comércio, temas bem imbricados. Sobre o primeiro, o lado brasileiro tem insistido que queimadas na Amazônia estão sendo combatidas com a instalação do Conselho de Amazônia e com operação de garantia de lei e da ordem (GLO). Argumentam que as estatísticas ainda não mostram os resultados da ofensiva. E que a Amazônia precisa ser vista pelo lado de desenvolvimento sustentável e não de preservacionismo apenas.

Autoridades brasileiras têm reiterado que o Brasil compartilha da preocupação sobre a proteção da Amazônia, mas sublinham que quem conhece melhor o problemas do desmatamento e do ambiente social são os brasileiros.

Sobre o acordo UE-Mercosul, os brasileiros têm observado que concessões feitas rapidamente no governo Bolsonaro para a conclusão do tratado foram feitas com base na percepção de que a expansão de suas exportações agrícolas não será para a Europa, por causa do protecionismo no velho continente. Com o acordo, o Brasil quer acelerar a integração nas cadeias de valor industrial europeias. A mensagem é de que o Brasil continuará a abertura comercial com ou sem a Argentina. Ou seja, o Mercosul não será empecilho.

Outro tema é a Venezuela. Para o governo brasileiro, o país virou terra de ninguém e santuário do crime organizado. A avaliação é de que Nicolás Maduro não controla grande parte do território, que agora estaria nas mãos da criminalidade.

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Bolsonaro ignora Fernández em aceno por conciliação

Daniel Rittner

Matheus Schuch

03/07/2020

 

 

No primeiro contato “frente a frente” que tiveram, embora apenas de modo virtual, os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández reforçaram a percepção de falta de sintonia entre si. Em uma cúpula do Mercosul realizada ontem por videoconferência, devido à pandemia de covid-19, o argentino Fernández lançou mensagens de conciliação a Bolsonaro. O brasileiro assumiu a palavra em seguida e foi protocolar. Leu um discurso com menos de seis minutos de duração e não respondeu aos sinais de trégua.

Tentando aparar arestas acumuladas no relacionamento bilateral, Fernández conclamou os países do Mercosul a deixar de lado questões ideológicas para favorecer a integração. Na reconstrução pós-pandemia, segundo ele, devem prevalecer “vínculos dos povos acima dos governos”.

“Guardo, por todos os líderes mundiais, o respeito que merecem porque seus povos os elegeram. Sei que não penso igual a muitos desses líderes. Sei que minha passagem pela história argentina é só uma passagem. Não tenho o direito de frustrar as aspirações continentais que temos, de nos unirmos e crescermos juntos, simplesmente porque não pensamos igual”, afirmou.

Os dois presidentes trocam farpas desde a campanha eleitoral do ano passado, quando Bolsonaro apoiou abertamente a recondução de Mauricio Macri à Casa Rosada e Fernández visitou o petista Luiz Inácio Lula da Silva na prisão em Curitiba. O brasileiro não foi à posse do argentino, contrariando uma tradição, e eles jamais conversaram por telefone.

Bolsonaro ignorou o aceno na reunião de cúpula. Concentrou-se em mostrar sua agenda de reformas econômicas, disse esperar que a Venezuela retome o caminho da liberdade e defendeu novos acordos de livre comércio - Fernández vê com restrições a abertura comercial neste momento de crise global. Quanto ao tratado com a União Europeia, fez uma cobrança aos vizinhos: “Apelo a todos os presidentes que instruam seus negociadores a fechar os textos. Atuemos com o firme propósito de deixá-los prontos para assinatura neste semestre”.

O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, voltou minutos depois ao tema de que a “vocação ideológica de cada um” não deve comprometer os esforços de integração do Mercosul. “Somos governantes circunstanciais”, observou.

Coube também ao uruguaio, que assumiu a presidência rotativa do bloco por seis meses, dizer que não há razões para uma escolha única entre Estados Unidos e China em meio à disputa das superpotências por hegemonia global. “Não podemos cair na falsa dicotomia de estar mais perto de um do que de outro. Os países que triunfaram em seu desenvolvimento estiveram próximos dos dois”, disse, em sua intervenção.

O alto representante da UE para negócios estrangeiros e política de segurança, Josep Borrell, participou extraordinariamente da reunião e acabou marcando diferenças com o governo brasileiro. Ele defendeu o fortalecimento do multilateralismo e cobrou uma resposta coletiva da comunidade internacional para lidar com a crise provocada pela pandemia, que definiu como a maior depois da Segunda Guerra.

Para o espanhol, a consequência da recessão é um aumento das desigualdades, que afetará principalmente os mais vulneráveis. Para minimizar esses impactos, recomendou uma “forte aposta no multilateralismo efetivo” e na cooperação entre os países. “Frente a essa crise, só cabe uma resposta coletiva, porque ninguém consegue se salvar sozinho”, disse o alto representante.

O discurso de Borrell valorizou termos que não têm encontrado apoio entre auxiliares de Bolsonaro. Em ocasiões recentes, o chanceler Ernesto Araújo atacou a Organização Mundial da Saúde (OMS) e pediu que não se use mais a expressão “multilateralismo”. “Palavras que terminam em ismo designam uma ideologia: fascismo, nazismo, comunismo. Não vamos fazer do multilateralismo uma ideologia”, afirmou Araújo, em maio.

Sem entrar em detalhes, Josep Borrell sugeriu esforços conjuntos para um “trabalho de comunicação” que possa reduzir oposição na Europa ao acordo de livre comércio com o Mercosul.