O globo, n. 31702, 24/05/2020. País, p. 6

 

Do ‘pacto com o diabo’ aos ‘dogmas’ econômicos

Thiago Prado

24/05/2020

 

 

As quase duas horas da reunião ministerial divulgada por ordem do STF evidenciam divisões entre ministros de Bolsonaro

 Além de revelar o pouco apreço por políticos e instituições na Esplanada, os 114 minutos exibidos para todo o Brasil da reunião do presidente Jair Bolsonaro com seus ministros expõem claras divisões no governo em determinados debates. Enquanto defendia a legalização do jogo no Brasil em resorts, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, teve que ouvir a colega Damares Alves classificar o tema como “pacto com o diabo”.

A ministra fez outra intervenção para combater o jogo após o ministro da Economia, Paulo Guedes, também sair em defesa da proposta de uma maneira peculiar:

“É só um centro de negócios. O cara entra, deixa a grana lá (...). Deixa cada um se foder do jeito que quiser (...). Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário”, disse Guedes. “Se não tiver como lavar dinheiro sujo lá”, rebateu Damares. Desde o ano passado, Bolsonaro não anda com a agenda defendida pela área econômica porque a poderosa bancada evangélica rejeita a legalização do jogo no país. Quando o tema juros para o financiamento da safra agrícola entrou na fala da ministra da Agricultura, Teresa Cristina, o próprio presidente estimula o confronto interno em tom de galhofa. “O Banco do Brasil não vai se defender não?”. É a hora na qual Guedes defende a privatização do BB junto com o presidente da instituição, Rubem Novaes. Fica clara a divergência com Bolsonaro: “Esse assunto só em 2023”, decreta o presidente.

A área econômica aparece em mais um ponto de discordância do governo — esse já sabido pela imprensa desde o lançamento do programa Pró-Brasil pelo ministro da Casa Civil, Braga Netto. O que veio a público agora é a temperatura da desavença entre Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. “Dogmas têm que ser deixados de lado.

Tenho visto governos extremamente liberais preparando programas de reconstrução”, defendeu Rogério Marinho. Minutos antes, Guedes já havia reclamado do programa de Braga Netto, criticado o apelido de “Plano Marshall” e dito que as ideias se pareciam com as aplicadas pelos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. Para responder Marinho, deu uma leve tripudiada ao rejeitar o termo dogma: “Li oito livros sobre reconstrução de países como a Alemanha. Não ouvi dizer, não”, provocou.

A unidade mais nítida na reunião está na trinca Banco Central, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, todos alinhados no ataque ao trabalho da mídia. Para Roberto Campos Neto, do BC, por exemplo, a mídia é “enviesada” e “joga medo”. O tom de menosprezo ao coronavírus, mantido por Bolsonaro desde o início da crise, é seguido fielmente por Rubem Novaes, do BB. Naquele período da reunião, em abril, o Brasil registrava uma média de 200 mortes por dia. “Minha sensação é que o tal do famoso pico já passou”, disse Novaes. Na última sexta-feira, o país teve 1.101 mortes pela novo coronavírus.

“Dogmas têm que ser deixados de lado. Tenho visto governos extremamente liberais preparando programas de reconstrução” 

Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional

 “Li oito livros sobre reconstrução de países como a Alemanha. Não ouvi dizer, não” 

Paulo Guedes, ministro da Economia, em resposta ao uso do termo “dogma” por Marinho