O Estado de São Paulo, n.46252, 05/06/2020. Metrópole, p.A13

 

Estudo da ‘Lancet’ sobre cloroquina é retirado do ar

Giovana Girardi

05/06/2020

 

 

Três dos 4 principais autores se retrataram, alegando não poder confirmar a base de dados usada na pesquisa

O medicamento. Outros estudos não comprovam eficácia

O controverso estudo publicado em 22 de maio na revista The Lancet com mais de 96 mil pacientes internados, que havia concluído que o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina em pacientes com o coronavírus, mesmo quando associados a outros antibióticos, aumenta o risco de morte e arritmia cardíaca nos infectados, foi retirado de circulação ontem por três de seus quatro autores.

O estudo havia motivado a suspensão, por parte da Organização Mundial de Saúde, de uma pesquisa global com a droga. Mas logo após a publicação uma série de questionamentos e suspeitas foi levantada sobre a base de dados utilizada no trabalho, o que fez a OMS retomar nesta quarta os testes clínicos com a substância. Ainda na terça, a Lancet havia divulgado um “manifesto de preocupação” a respeito do estudo. E agora os cientistas se manifestaram publicamente, afirmando que não tiveram condições de confirmar a veracidade dos dados apresentados.

A pesquisa publicada na Lancet tinha sido apresentada como a maior já realizada sobre os efeitos que a cloroquina e a hidroxicloroquina têm no tratamento do coronavírus, de modo observacional. Ela foi feita a partir de uma base de dados da Surgisphere Corporation, uma pequena empresa americana que apresentou informações de diversos hospitais de vários países. O fundador da empresa, Sapan Desai, apareceu como co-autor do trabalho.

Nesta quarta, o jornal inglês The Guardian publicou uma reportagem levantando suspeitas sobre a empresa. Disse que ela tinha em sua equipe um escritor de ficção científica e um “modelo de conteúdo adulto” e que os dados apresentados não batiam com a realidade de alguns hospitais, como da Austrália, por exemplo.

Os outros três autores do estudo, Mandeep Mehra, Frank Ruschitza e Amit Patel, afirmam en nota divulgada ontem pela Lancet, que lançaram uma revisão independente, por uma terceira parte, dos dados da Surgisphere, com o consentimento de Desai, “para avaliar a origem dos elementos da base de dados, para confirmar que estavam completos e também para replicar as análises apresentadas no estudo”.

Na nota, os pesquisadores dizem, porém, que os revisores informaram que a Surgisphere não transferiria toda a base de dados e os contratos dos clientes porque isso “violaria os acordos de confidencialidade”. Sendo assim, dizem que não foi possível “conduzir uma revisão independente e privada” e os revisores iam se retirar do processo. “Sempre desejamos realizar nossa pesquisa de acordo com as mais altas diretrizes éticas e profissionais. Nunca podemos nos esquecer da responsabilidade que temos, como pesquisadores, de garantir escrupulosamente que nós nos calçamos em bases de dados que aderem aos nossos altos padrões. Com base nesse desenvolvimento, não podemos mais garantir a veracidade das fontes de dados primárias. Por causa desse desenvolvimento infeliz, os autores solicitam a retirada do artigo”, escreveu o trio.

“Todos nós entramos nessa colaboração para contribuir de boa fé e em um momento de grande necessidade durante a pandemia de covid-19. Lamentamos profundamente a vocês, editores e leitores da revista por qualquer constrangimento ou inconveniência que isso possa ter causado.”

A revista afirmou que “leva a sério as questões de integridade científica” e disse que “há muitas questões pendentes sobre a Surgisphere e os dados que supostamente foram incluídos neste estudo”. Apesar das possíveis falhas deste estudo, outras pesquisas vêm indicando que a cloroquina e a hidroxicloroquina têm pouca ou nenhuma efetividade para tratar a covid-19 ou proteger contra a doença.

A dimensão

96 mil

Pacientes internados seriam o foco da pesquisa. Mas a Surgisphere se recusou a compartilhar os centros clínicos participantes, alegando confidencialidade.

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Entrevista - Carlos Wizard: "No ministério, bilionário defende uso preventivo da substância"

Carlos Wizard

Mateus Vargas

05/06/2020

 

 

Empresário diz que em 30 dias será possível ver avanços com o uso do polêmico medicamento no Brasil

Carlos Wizard, novo titular da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE)

‘Com a orientação, estamos salvando vidas’

De malas prontas para assumir um cargo no Ministério da Saúde, o empresário Carlos Wizard defende o uso de coquetel de medicamentos, incluindo a cloroquina, para pacientes como forma de prevenir o novo coronavírus. Ao Estadão, ele usou como exemplo o coquetel adotado em Porto Feliz, interior de São Paulo.

“Precisa ter mais evidência do que uma cidade com 75 mil habitantes, com mais de 500 infectados e sem nenhum óbito?”, questionou Wizard.

A reportagem levantou, porém, que a informação não é correta. Oficialmente, a cidade de 51.928 habitantes registra 60 casos positivos e 3 óbitos pela doença. A vizinha Salto, com o dobro da população – 104.688 moradores –, que não adota o medicamento, tem 64 casos e apenas uma morte. Em Porto Feliz, o uso da hidroxicloroquina associada a outros medicamentos começou no início de abril, bem antes do protocolo de 20 de maio do Ministério da Saúde, liberando para pacientes com sintomas leves.

Como o senhor pretende contribuir para o enfrentamento da pandemia do coronavírus?

Comecei a fazer primeiras reuniões com principais diretores da secretaria. São 600 funcionários, entre servidores, bolsistas e consultores. E um orçamento de R$ 20 bilhões. O Ministério da Saúde não trabalha sozinho. Trabalhamos diretamente ligados aos secretários de cada Estado e município. A comunidade internacional está muito preocupada em oferecer vacina para covid-19. Estamos já em contatos avançados com Oxford.

Qual a sua visão sobre o uso da cloroquina como tratamento?

Qual nossa orientação, em nota técnica distribuída a secretários de Estados e municípios? Com base em estudos feitos no Brasil, e internacionalmente, em centenas de países, que comprovadamente indicaram que a cloroquina e a hidroxicloroquina preservam a vida, na fase 1 da covid-19, logo que paciente demonstra primeiros sinais. Os resultados são muito satisfatórios. No ministério antigo, no tempo do Mandetta, diziam: se você está com febre leve, fica em casa. E as pessoas ficavam. Essa conduta trouxe milhares de pessoas a óbito. Elas ficavam em casa, não recebiam tratamento. A doença evolui. Milhares foram a óbito. Com essa nova orientação técnica estamos salvando vidas.

Já há dados que mostram melhores resultados após divulgação da mais recente orientação do ministério sobre cloroquina?

Acredito que em 30 dias vai ter uma comparação muito nítida. Do que era, e qual está sendo resposta.

Em relatórios diários, técnicos da SCTIE não apontam benefício da cloroquina contra a covid-19. Quais estudos comprovam a eficiência?

Não trabalhamos com observações empíricas. O Ministério da Saúde só toma suas decisões, normativas, com base em estudos científicos, publicados em revistas especializadas na área médica internacional. Estamos trabalhando com vidas. Não podemos correr risco. Caso você queira, especificamente, vou pedir para a assessora mandar um calhamaço de pelo menos cem estudos comprovados internacionalmente.

Pretende ampliar a orientação do ministério sobre cloroquina? Vamos combinar. Você não vai colocar cloroquina, chame de coquetel, conjunto, grupo de vários fármacos que preconizamos. A resposta é sim. Se um pai de família é diagnosticado, quando volta para casa também recomendamos tratamento profilático para esposa, sogra, filhos, quem estiver no núcleo familiar. Profilaticamente falando, já recomendamos sob orientação médica.