O globo, n. 31695, 17/05/2020. Opinião, p. 2

 

Reconstrução do país precisa estar baseada na Ciência

17/05/2020

 

 

É possível que o novo coronavírus faça parte da vida em sociedade por muito tempo além dos inicialmente imaginados dois anos para desenvolvimento, produção e distribuição de vacina ou tratamento. Quando superada a surpresa pandêmica, no entanto, será necessário elevar ao topo da agenda política uma ampla reestruturação da saúde pública. Requer prioridade absoluta, porque se trata do mais grave problema de defesa e fere o caráter essencial do Estado moderno — a garantia da vida e da saúde dos cidadãos.

São muitas as fragilidades brasileiras em condições sanitárias, biossegurança, vigilância epidemiológica e assistência médico-hospitalar. Negligências históricas estão aí expostas na tragédia social e no desastre econômico em curso. Paradoxalmente, o país dispõe de uma base legislativa, científica, tecnológica e empresarial razoável para iniciativas coordenadas na área.

Possui, também, um Sistema Único de Saúde (SUS) cuja eficácia está sendo testada, com êxito, nessa pandemia. E há uma comunidade de pesquisadores em unidades de excelência, como a Fiocruz, cujo trabalho consolidou o Brasil como potência científica, como qualifica a revista britânica “The Lancet”, líder no setor há 197 anos.

O desafio é político. Trata-se de rever prioridades educacionais, sanitárias e de desenvolvimento das ciências, das básicas à epidemiologia, com reestruturação do complexo de laboratórios e da base médico hospitalar do SUS.

É preciso estimular a integração em bases competitivas de toda a cadeia, da pesquisa à produção tecnológica da saúde. Além disso, é fundamental empreender a universalização da rede de saneamento. Não falta dinheiro, falta governo. Análise do Ipea revela como as ciências foram relegadas à irrelevância na última década e meia. Em 2002 a área absorvia 0,79% do Orçamento da União. A partir de 2004, houve uma desidratação contínua. Entre 2015 e 2019, o setor perdeu 40% do valor real dos recursos federais.

No ano passado, o governo julgou mais importante liberar gastos na burocracia da Advocacia Geral da União (61% de execução orçamentária) do que investir em ciência e tecnologia (46%). Há meio século o país se mantém num crescimento econômico pífio, com expansão do PIB à média inferior a 2,5% ao ano. Ainda assim, é capaz de sustentar investimentos militares meritórios, como o programa de submarinos nucleares. Agora, o cenário mudou radicalmente, com vulnerabilidades na soberania expostas e realçadas pelo histórico desmazelo na educação, na saúde, na ciência e na tecnologia. A crise deflagrada pela pandemia é didática.