O globo, n. 31694, 16/05/2020. País, p. 16

 

A versão e o fato

16/05/2020

 

 

Troca no GSI contradiz alegação de Bolsonaro sobre reunião com Moro

 O presidente Bolsonaro trocou o responsável por sua segurança a menos de um mês da reunião de 22 de abril, revelou o Jornal Nacional. No encontro ministerial, o presidente reclamava de não conseguir mudar o chefe da "segurança nossa", o que é interpretado como um desejo de interferir na PF.

Apesar de alegar que o motivo para ter manifestado contrariedade com os órgãos de segurança na reunião ministerial do 22 de abril era a preocupação com a segurança pessoal de sua família no Rio, o presidente Jair Bolsonaro promoveu o responsável por essa função menos de um mês antes desta data. Como revelou o Jornal Nacional, Bolsonaro alçou a um posto superior no final de março o então diretor do Departamento de Segurança Presidencial, ligado ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e colocou o seu número dois em seu lugar. Na reunião citada pelo exministro Sergio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal (PF), Bolsonaro reclamou que não conseguia trocar o chefe da "segurança nossa", segundo trecho transcrito pela , segundo a transcrição divulgada pela própria Advocacia-Geral da União (AGU). A AGU e o próprio Bolsonaro afirmam que a menção era à segurança da família, mas fontes que virama íntegra do vídeo sustentam que Bolsonaro mencionava o desejo de mudanças na Polícia Federal, efetivadas dois dias depois coma demissão do diretor-geral Maurício Valeixo, levando à saída de Moro do governo. A segurança pessoal do presidente e de seus familiares é atribuição do GSI. O departamento em que ocorreram as mudanças é justamente o responsável por esta área. Esse órgão era chefiado até o final de março por André Laranja de Sá Corrêa. Entretanto, no dia 26 de março, ele foi promovido a general de brigada e transferido para o comando da 8ª Brigada de Infantaria Motoriza do Exército, localizada em Pelotas (RS). A promoção de oficiais generais é prerrogativa do presidente da República e deve ocorrer de acordo com o mérito. O cargo atualmente ocupado por Sá Corrêa é importante dentro da estrutura do Exército e já foi ocupado pelo atual ministro da

Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Para o lugar de Sá Corrêa, Bolsonaro colocou Gustavo Suarez, que até então era diretor-adjunto do departamento. Bolsonaro fez uma terceira mudança na estruturada segurança. Em 28 fevereiro, menosde dois meses antes da reunião, houve trocana chefiado escritório do Rio. O coronel Luiz Fernando Cerqueira foi substituído pelo tenente coronel Rodrigo Garcia Otto. As mudanças contradizem versão de Bolsonaro de que estava insatisfeito com os responsáveis pela segurança da família no Rio, motivo alegado por ele para seus posicionamento na reunião. O presidente reclamou ainda que não conseguia fazer mudanças nessa área, o que é desmentido pelas promoções feitas.

"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira ", declarou o presidente, segundo a transcrição da AGU. Na manhã de ontem, Bolsonaro reafirmou que estava se referindo à "segurança familiar":

— Eu espero que a fita se torne pública para que a análise correta venha a ser feita, tá? A interferência não é nesse contexto da inteligência não, é na segurança familiar. É bem claro, segurança familiar. Eu não toco PF e nem Polícia Federal na palavra segurança. Fontes que tiveram acesso ao vídeo da reunião garantem que o contexto da frase era de mudanças na Polícia Federal e que Moro era o ministro que o presidente ameaçava trocar quando falou durante a reunião.

 "PF, DUAS LETRAS"

O presidente admitiu que citou a Polícia Federal durante sua fala ao conselho de governo. Ao longo da semana, Bolsonaro negou que tenha mencionado o órgão federal na reunião ministerial. Agora, ressaltou que falava sobre serviço de inteligência e não sobre a mudança desejada no Rio.

— Tá a palavra PF, duas letras, PF —disse Bolsonaro. —É Polícia Federal —respondeu um repórter.

— Ô, cara... ô, cara. Tem a ver com a Polícia Federal, mas é reclamação PF no tocante ao serviço de inteligência —afirmou. Perguntado sobre ter dito que iria interferir, Bolsonaro irritou-se:

— Não. Eu não vou me submeter a um interrogatório por parte de vocês. A interferência não é nesse contexto da inteligência não, é na segurança familiar. O ministro Celso de Mello, relator do caso no STF, informou ontem que só decidirá na semana que vem sobre a divulgação do vídeo da reunião, entregue pelo governo na última semana. Ele vai assistir à gravação na segunda-feira. A AGU defende que apenas as falas de Bolsonaro sejam divulgadas e pede a exclusão de alguns trechos que envolvam relações internacionais e segurança nacional. O parecer do procurador-geral da República, Augusto Aras, foi ainda mais restritivo, defendendo a liberação apenas de falas que tenham ligação com o inquérito. Os advogados de Moro, porém, defendem a divulgação integral, para que as declarações do presidente no encontro estejam contextualizadas.

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Pressão sobre PF veio junto de inquérito contra Flávio

Aguirre Talento

16/05/2020

 

 

Primeira declaração do presidente sobre trocar chefia no Rio ocorreu duas semanas após avanço de investigação do filho mais velho
A pressão pública do presidente Jair Bolsonaro para a troca do superintendente da Polícia Federal (PF) do Rio de Janeiro teve início duas semanas depois que um juiz eleitoral determinou o envio, justamente para a PF do Rio, de um inquérito eleitoral contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente. Na ocasião, o juiz determinou que a PF realizasse diligências contra o senador, como a tomada de seu depoimento. As insistentes tentativas de Bolsonaro de trocar o superintendente da PF do Rio estão no centro do inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar supostas interferências do presidente na corporação, a partir das acusações do exministro da Justiça Sergio Moro. O GLOBO mostrou no último dia 1º que a PF pediu arquivamento do inquérito em março, sem nem solicitar as quebras de sigilo dos personagens envolvidos. O Ministério Público ainda não se manifestou sobre esse arquivamento. O inquérito eleitoral investigava se o senador Flávio Bolsonaro cometeu lavagem de dinheiro e falsidade ideológica eleitoral ao declarar seus bens nas eleições de 2014, 2016 e 2018.

Documentos do processo obtidos pelo GLOBO mostram que a pressão na PF do Rio coincide com o avanço da investigação contra Flávio. O inquérito havia sido aberto pela Polícia Federal em junho de 2018, quando Bolsonaro nem era presidente e Flávio ainda era deputado estadual na Alerj, mas não chegou a produzir provas relevantes porque uma discussão jurídica sobre a prerrogativa de foro privilegiado travou o andamento do caso. Apenas depois que a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Justiça Eleitoral definiram que o processo correria na 204ª Zona Eleitoral do Rio, o inquérito voltou a andar.

Em 24 de junho de 2019, a promotora eleitoral Adriana Alemany de Araújo pediu que o processo fosse enviado à Polícia Federal para que fosse tomado o depoimento de Flávio Bolsonaro e obtidas suas declarações de rendimentos à Receita Federal. Em 2 de agosto de 2019, o juiz eleitoral Rudi Baldi Loewenkron acolheu os pedidos do Ministério Público Eleitoral, que incluíam tomar o depoimento de Flávio sobre os fatos, e determinou que o caso fosse finalmente enviado para a PF do Rio para que essas diligências fossem realizadas. No despacho, o juiz solicita que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio fornecesse cópia dos registros de candidatura de Flávio Bolsonaro, para apurar suspeitas sobre sua evolução patrimonial, e determina que em seguida o caso seja enviado para a Polícia Federal. "Após, remetam-se os presentes autos à Delegacia de Polícia Federal. Rio de Janeiro. 2 de agosto de 2019", escreveu o juiz. Devido à obtenção desses registros, o processo só chegou efetivamente à PF no dia 10 de setembro. Duas semanas depois do despacho do juiz eleitoral, em 15 de agosto, o presidente Jair Bolsonaro deu declarações públicas na saída do Palácio da Alvorada de que havia determinado a troca do superintendente da PF do Rio.

— Todos os ministérios são passíveis de mudança. Vou mudar, por exemplo, o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Motivos? Gestão e produtividade — disse, na saída do Palácio da Alvorada.

 DECLARAÇÕES E CRISES

Essas declarações provocaram constrangimento na PF e geraram a primeira crise entre Bolsonaro e a corporação. Com a pressão, a PF anunciou a troca do superintendente no dia 16 de agosto. O presidente queria indicar um nome de sua confiança para o cargo no Rio, o delegado Alexandre Saraiva. Depois da reação de delegados, Bolsonaro recuou e a PF acabou escolhendo o delegado Carlos Henrique Oliveira. A defesa de Flávio Bolsonaro foi procurada na tarde de ontem, mas não respondeu até o fechamento desta edição.