O globo, n. 31694, 16/05/2020. Opinião, p. 2

 

Bolsonaro decide multiplicar os riscos à vida na pandemia

16/05/2020

 

 

Ao confrontar a Ciência, presidente assume responsabilidade histórica pela politização da epidemia
Quando o ortopedista Luiz Henrique Mandetta foi demitido do Ministério da Saúde, o Brasil contava duas mil mortes na pandemia do novo coronavírus. Ontem, o oncologista Nelson Teich escolheu se demitir do comando do ministério. A sexta-feira terminou com quase 15 mil mortos na contagem governamental.

Em apenas 27 dias o país teve dois ministros da Saúde. Nesse período viu aumentar em 650% o número de mortes e consolidou indesejável liderança em disseminação da doença na América Latina. É a dimensão trágica da propagação de um vírus, para o qual o mundo ainda não desenvolveu formas de controle, vacina ou tratamento eficaz. No entanto, esse drama brasileiro está sendo agravado por um componente de irracionalidade política: o pandemônio na pandemia capitaneado por um presidente cujo desgoverno faz multiplicar, diariamente, os riscos à vida de 211,5 milhões.

Ao confrontar a Ciência, Bolsonaro assume a responsabilidade histórica pelas consequências nefastas da politização de uma epidemia sem precedentes. Ao transformar o Palácio do Planalto numa usina de crises, conseguiu desorganizar a já fragilizada estrutura de ação federal na Saúde. Com o seu negacionismo, se alinha a personagens caricatos como os ditadores Daniel Ortega, da Nicarágua, e Alexander Lukashenko, da Bielorrússia. Ortega decidiu desconhecer a pandemia. Por isso, os nicaraguenses realizam enterros clandestinos das vítimas da Covid-19. Lukashenko, igualmente, acredita que o mundo vive uma "psicose" com o vírus. Por isso, receita aos bielorrussos terapias preventivas à base de muita vodca e sauna. Mais modesto, e reafirmando todas as suas razões para ser modesto, Bolsonaro optou por prescrever aos seus ministros da Saúde a imposição da hidroxicloroquina como protocolo nacional para tratamento do novo coronavírus. Ainda não foi provada a eficácia da droga, isolada ou em coquetel. Ao contrário, os estudos científicos disponíveis são contraindicativos. Portanto, não há lógica em tal obsessão, salvo a já estabelecida pela psicopatologia. O desgoverno comandado pelo presidente resulta numa desagregação no ministério, com efeitos destrutivos para a inteligência técnica disponível no Sistema Único de Saúde, responsável pela coordenação das iniciativas para mitigação da pandemia em todo o país. Está claro que Bolsonaro deseja um ministro na posição de ajudante de ordens, a despeito de suas "prescrições" sobre a hidroxicloroquina ou o fim do distanciamento social contrariarem o consenso fundado no conhecimento científico. Nesse rumo, será necessária uma firme atuação do Legislativo e do Judiciário, para delimitar o espaço do Executivo e conter um governante seduzido pelas próprias ideias, embora equivocadas, para se dizer o mínimo.(...)