O globo, n. 31698, 20/05/2020. Especial Coronavírus, p. 11

 

Gargalo na produção

André Duchiade

20/05/2020

 

 

Após descoberta, distribuir vacina será desafio global

NICOLAS ASFOURI/AFP/18-5-2020Indústria. Pesquisa em Pequim: Brasil leva vantagem por ter fábricas da Fiocruz e do Butantã, mas tecnologia é incerta

 A assembleia geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou clara a ansiedade geral sobre a disponibilidade de uma eventual vacina contra a Covid-19, com uma resolução que pede “acesso equitativo” de todos países. A ansiedade se explica porque, se há bons motivos para acreditar no desenvolvimento de uma vacina em tempo recorde — o que, para muitos especialistas, significa de 12 a 18 meses—,é mais incerto quem terá acesso a ela inicialmente. Produzir bilhões de doses necessariamente demandará tempo, e certas populações, entre diferentes países e também dentro deles, terão de ser priorizadas . O temor de muitos sanitaristas é que a lei do mais forte e do mais rico prevaleça.

—Há muitas coisas que não se sabe, e temos visto muitos exemplos de comportamento monopolista, nos quais países fazem compras bilaterais junto a empresas — afirmou Gavin Yamey, professor de Saúde Global na Universidade Duke.

— Precisaremos de um nível de cooperação nunca antes visto, entre países, o setor privado, a filantropia e outros.

CORRIDA ENTRE POTÊNCIAS

Mais do que a propriedade intelectual, a capacidade de produção será o principal gargalo para uma estratégia de vacinação global, e países que financiam grandes farmacêuticas levam vantagem, afirmou RafaelVilas anjuan, diretor de políticas do Instituto de Saúde Global, de Barcelona.

— Como produzir 5 bilhões de vacinas, ou 10 bilhões, caso a dose tenha que ser dupla? — disse.

— A verdade é que nenhum dos países está isento de tensões muito unilaterais neste momento, pensando noque pode obter para si.

Um exemplo do passado recente, o da gripe suína em 2009, é adverso. Na ocasião, os países pobres, entre os mais atingidos pela doença, foram para o final da fila da vacina, enquanto as companhias farmacêuticas assinaram contratos com as grandes potências. Houve disputas entre elas próprias, e o governo da Austrália chegou a deter remessas até imunizara sua população. Nos EUA, o governo de Barack Obama tinha contratos que lhe garantiam 600 milhões de doses, fatia enorme dos estoques globais.

Seiscentos milhões de doses são, também, a capacidade anual que a Sanofi, uma das maiores companhias que pesquisam a vacina da Covid-19, afirmou deter, caso venha a obter êxito na sua investigação. Na semana passada, o presidente da empresa, Paul Hudson, afirmou que, caso venha a ter êxito na pesquisa, aprioridade das remessasse rã odos EUA, porque o país “investiu em assumir o risco” em fevereiro, quando firmou um pacto coma empresa. Emano eleitoral, Trump tem feito esforços bilionários para acelerar as pesquisas, incluindo a Operação Warp Speed( velocidade de Dobra ), que reúne companhias farmacêuticas, agências governamentais e militares, e buscam apressar o prazo para oito meses.

Por parte da China,há também um ritmo acelerado e quatro das oito candidatas na etapa dos testes clínicos são de lá. A China afirmou que, caso desenvolva a vacina primeiro, a colocará em domínio público, o que permitiria a Pequim obter um forte trunfo em sua rivalidade com Washington.

Em relação à propriedade intelectual, outro possível ponto de discórdia, a declaração de acesso equitativo feita ontem na OMS, sem caráter vinculante,é um bom agouro, por afirmar que todos terão em princípio o mesmo direito. Restam dúvidas, contudo, sobre como isso será operacionalizado, disse Francisco Viegas, consultor no Rio de Janeiro da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi).

— Há muitas dúvidas sobre como uma possível cooperação funcionaria no mundo real, o que envolve transferência de tecnologias, capacidade de produção, abertura de patentes e a adaptação de políticas regulatórias —afirmou.

Um dos problemas, segundo David Salisbury, que foi diretor do programa nacional de imunização britânico e hoje está na Chatham House, é que será muito difícil produzir as instalações industriais. Também não há leis que obriguem as companhias a obedecer .

—Não estou otimista, porque será muito difícil produzir, manufaturar vacina sé altamente complexo—afirmou.

— A OMS diz que queremos equidade, mas são empresas privadas. Não há jeito de evitar, é um beco sem saída.

O preço da vacina também será determinante para o seu acesso. Em meio às disputas, alguns tentam abordagens multilaterais. Fundada há 20 anos, a Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi), em Genebra, lançará, no próximo dia 4, um compromisso antecipado de mercado (AMC), contrato vinculativo que garante mercado para quem desenvolver o produto, voltado aos 73 países mais pobres, que não incluem o Brasil.

Segundo todos os especialistas entrevistados, o país leva vantagem em relação ao mundo em desenvolvimento por contar com as fábricas de Biomanguinhos/Fiocruz e o Instituto Butantã, dois dos maiores centros da América Latina.

Segundo Katherine Bliss, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington, “os países e as indústrias precisam pensar e agir agora, entender quais são as suas necessidades e se preparar”. De acordo com Akira H om ma, pesquisador emérito da Fiocruz, um dos desafios para essa preparação será que ainda não se conhece a plataforma tecnológica que será usada, o que dificulta a adaptação. O pesquisador afirma que a fundação “está em contato com grandes laboratórios” do mundo, para parcerias.

— Se houver uma plataforma tecnológica de que não dispomos, muito distante da nossa, demorará mais a produzirmos —afirmou.