O globo, n. 31698, 20/05/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Cloroquina: sem provas Bolsonaro diz que ampliará uso de remédio controverso

Daniel Gullino

Dimitrius Dantas

Naira Trindade

20/05/2020

 

 

LOUAI BESHARA/AFPNovas regras. Protocolo que amplia utilização de cloroquina até para pacientes com casos leves de Covid-19 deve ser divulgado hoje, segundo Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro afirmou ontem, em entrevista a um blogueiro de Pernambuco, que o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, irá assinar, na manhã de hoje, um novo protocolo da utilização da cloroquina em pacientes com coronavírus.

De acordo com Bolsonaro, o novo protocolo vai permitir a utilização do medicamento, em qualquer paciente, a partir dos primeiros sintomas de Covid-19, e não apenas em situação de casos graves da doença. O uso da cloroquina foi o pivô da demissão dos dois últimos ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Nenhum dos dois aceitou expandir o uso do remédio sem que sua eficácia contra a Covid-19 fosse comprovada.

Bolsonaro diz que o protocolo será “democrático”, pois só receberá o tratamento quem quiser:

— O que é democracia? Você não quer, você não faz. Quem quiser tomar, que tome — afirmou o presidente.

—Quem for de direita, toma cloroquina. Quem for de esquerda, toma Tubaína.

Em defesa do uso de hidroxicloroquina, o governo deve divulgar nos próximas dias uma campanha mostrando nomes de médicos que apoiaram publicamente o uso do medicamento. Três imagens assinadas pela Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) trazem a relação de 15 especialistas que já se declararam favoráveis ao remédio.

As três imagens ainda não foram publicadas nos canais oficiais do governo, mas já estão sendo divulgadas por mensagens via aliados do presidente. Na relação de médicos apoiadores da hidroxicloroquina, aparecem os nomes de profissionais nacionais e internacionais, como a imunologista Nise Yamaguchi, o virologista Paolo Zanotto, o infectologista Didier Raoult e o CEO da Novartis, Vas Narasimhan, entre outros.

Enquanto Bolsonaro concentra esforços na ampliação do uso da cloroquina em pacientes com Covid-16, um artigo assinado por oito técnicos do Ministério da Saúde, e enviado para a Revista da Associação Brasileira de Saúde Coletiva na última semana, aponta que não há eficácia e segurança comprovadas de nenhum medicamento para o tratamento do coronavírus. Segundo o texto, as “melhores evidências” colhidas até o mês de abril não conseguiram comprovar os benefícios do uso da cloroquina, apresentando resultados distintos entre si.

O artigo enviado para publicação é assinado por 11 pesquisadores, oito deles ligados ao departamento responsável pela coleta de evidências do Ministério da Saúde. No texto, ao citar pesquisas publicadas internacionalmente, é sugerida a possibilidade de o coronavírus ser uma doença “essencialmente não tratável”, apesar dos esforços da comunidade científica na busca de tratamentos seguros e eficazes.

NA CONTRAMÃO DE ESTUDOS

No artigo, os técnicos do Ministério da Saúde revisaram 37 pesquisas de vários países dedicadas à investigação de tratamentos contra o coronavírus. Somadas, observaram 2.545 pacientes. Entre os pesquisadores envolvidos na elaboração do documento, estão a diretora do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde e a Coordenadora de Evidências e Informações Estratégicas em Gestão em Saúde. Sobre cloroquina, foram analisados dez estudos, que tiveram resultados inconclusivos.

Desde 8 de abril, o Ministério da Saúde tem publicado um “Informe Diário de Evidências”, com o resultado de pesquisas sobre tratamentos para a Covid-19. Nestes informes, O GLOBO identificou menção a 48 estudos ligados à cloroquina.

A conclusão da maioria deles não aponta para a eficácia como tratamento. Há estudos que indicam benefícios, mas não cumprem, segundo os técnicos do Ministério, critérios de qualidade metodológica. Para oito deles, a cloroquina não apresenta diferença em relação ao tratamento com oxigênio e antivirais.

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Estoque do medicamento no país aumenta 30%

Marco Grillo

Paula Ferreira

20/05/2020

 

 

Exército produziu 1,25 milhão de comprimidos e contribuiu para que volume de cloroquina disponível chegasse a 11,6 milhões

 O estoque disponível no país de medicamentos à base de cloroquina e hidroxicloroquina aumentou 30% em menos de um mês, de acordo com dados da indústria farmacêutica e do Exército compilados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O volume, que era de 8,9 milhões de comprimidos no fim de março, passou para 11,6 milhões na segunda semana de abril. A atuação das Forças Armadas foi responsável por boa parte do crescimento: 1,25 milhão de comprimidos foram produzidos pelo Exército no período.

As informações constam de ofício enviado pela Anvisa ao Ministério da Economia na última quinta-feira. O documento, ao qual O GLOBO teve acesso, traz também dados da comercialização do medicamento: cerca de 3,4 milhões de comprimidos foram consumidos por mês no país no primeiro semestre do ano passado. Os remédios são usados por pacientes com lúpus, malária e artrite reumatoide.

Desde o fim de março, o protocolo do Ministério da Saúde permite o uso dos medicamentos no tratamento de casos graves de coronavírus. Na nota técnica distribuída para estados e municípios, o ministério orientou que seja feito um eletrocardiograma antes de o remédio ser ministrado e que o acompanhamento do ritmo cardíaco aconteça em todo o período de uso da medicação, já que há risco de arritmia. Em pacientes com insuficiência renal ou hepática graves, o protocolo prevê que a dose seja reduzida. Após a insistência do presidente Jair Bolsonaro, a pasta deve divulgar hoje a mudança na regulamentação, permitindo que o remédio também seja administrado em casos leves da doença.

Com o aumento no volume de medicamentos prontos, houve redução no estoque de materiais necessários para a produção no país. De acordo com as informações repassadas pela Anvisa, a indústria brasileira aguardava a chegada de insumos vindos da Índia para manter o ritmo de produção. Uma das empresas consultadas relatou que esperava, além da vinda de material já adquirido, a autorização do governo indiano para uma nova compra junto a fabricantes locais. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) informou que tinha insumos suficientes para produzir cerca de 4 milhões de comprimidos.

O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFex), que usualmente produz 250 mil comprimidos a cada dois anos, criou um estoque de 1,25 milhão em menos de um mês. Em termos absolutos, só a Apsen teve um aumento maior de estoque, passando de 5,1 milhões para 8,3 milhões.

Desde o início da pandemia, Bolsonaro tem citado o papel do laboratório do Exército, que tem 180 funcionários, entre civis e militares, e capacidade de produzir até um milhão de comprimidos de cloroquina por semana. Desde 2000, o LQFex tem autorização para produzir o medicamento no país — o custo atual é de R$ 0,20 por comprimido. A Marinha, que já atua na confecção de embalagens, agora avalia também entrar na produção. Exército e Ministério da Saúde não responderam quanto já gastaram com a produção e compra de cloroquina, hidroxicloroquina e insumos.