O globo, n. 31693, 15/05/2020. País, p. 7

 

MP livra agentes públicos de punição por erros

Manoel Ventura

Guilherme Caetano

Daniel Gullino

15/05/2020

 

 

Texto, que já está em vigor, estabelece que as autoridades só poderão ser responsabilizadas na pandemia se ficar provada ação intencional ou falha ‘grosseira’. Para especialistas em Direito, há conflito com a Constituição

ALAN SANTOS/PREncontro. O presidente Jair Bolsonaro se encontrou ontem com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em Brasília, mas não trataram da MP

O presidente Jair Bolsonaro editou ontem uma medida provisória (MP) que livra qualquer agente público de processos civis ou administrativos por erros relacionados à pandemia provocada pelo novo coronavírus. Considerado genérico, o texto foi recebido com críticas por membros do Judiciário, parlamentares e especialistas.

Após a repercussão negativa, Bolsonaro afirmou que a medida é destinada apenas a servidores do Banco Central (BC), para que eles não sejam punidos pela compra de créditos com fraudes. O BC, no entanto, não é mencionado em nenhum momento na MP. O termo “crédito” também não aparece.

O texto estabelece que as autoridades só poderão ser responsabilizadas se ficar comprovado o dolo (ação intencional) ou “erro grosseiro”. A MP estabelece, no entanto, que o chamado “erro grosseiro” só estará configurado levando-se em conta cinco variáveis que, na prática, tornariam muito restritivo o enquadramento de autoridade por essa conduta.

Segundo a medida, para avaliar se houve erro, devem ser considerados “os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19”.

O texto diz ainda que mesmo que haja comprovação de que o ato do agente público causou algum dano não seria suficiente para que ele seja responsabilidade administrativa e civilmente. No caso de processos administrativos, a punição poderia ser até a perda do cargo para servidores de carreira ou em cargo de confiança. Na esfera civil, os agentes públicos poderiam ser obrigados a ressarcir o erário pelos danos causados.

SUGESTÃO DA ECONOMIA

A MP foi sugerida pelas equipes do Ministério da Economia e do BC, que têm receio de serem punidas no futuro. Técnicos do Ministério da Saúde também queriam ser resguardados de decisões que pudessem ser consideradas erradas no futuro, principalmente com relação à compra de equipamentos e contratação de pessoal.

Dentro da área econômica, há um receio de que as medidas tomadas agora sejam questionadas no futuro, por órgãos de controle e pelo Ministério Público. Um exemplo dado é o auxílio emergencial de R$ 600. O benefício foi desenhado em tempo recorde e integrantes do Ministério da Economia admitem que pode haver erros justamente por conta dessa velocidade.

Os gestores ligados diretamente à elaboração das medidas querem evitar o que vem sendo chamado de “apagão das canetas”, quando os técnicos têm receio de assinar notas e medidas por medo de serem responsabilizados por órgãos de controle.

A medida também era uma exigência da diretoria do Banco Central e dos servidores da autarquia. Eles avisaram que só iriam porem prática a autorização dada pelo Congresso para o BC adquirir títulos privados de crédito no mercado secundário, além de títulos públicos nos mercados secundários local e internacional, caso fosse editada uma MP nesse sentido.

Técnicos vinham alertando que que o Banco Central não iria atuar na compra de títulos privados caso seus dirigentes não tivessem proteção legal para tanto. A avaliação é que, sem proteção, ficariam sujeitos a questionamentos.

Para o procurador do Estado de São Paulo, José Luiz Souza de Moraes, especialista em Direito Constitucional, a MP vai contra o princípio republicano segundo o qual, diz ele, os agentes públicos devem ser responsabilizados por seus atos. Segundo ele, o “direito não admite autoanistia”, e administradores públicos não podem se dar um salvo-conduto para evitarem ser responsabilizados.

—A Constituição Federal, em seu artigo 37, diz que qualquer ente público que cause dano a alguém tem a obrigação de indenizá-lo. Sempre que um agente público causar dano a alguém, seja por dolo ou culpa, ele terá que pagar uma indenização perante o Estado. Essa MP do Bolsonaro eleva de forma absurda as exigências para que essa responsabilização seja realizada. Por isso, é incompatível com a Constituição —afirma.

A advogada Mérces da Silva Nunes, especialista em direito médico, chamou a MP de “carta em branco” para agentes públicos em todo o país. Ela afirma que o “escândalo” da medida está no terceiro de seus três artigos, que define como será aferida a ocorrência do erro grosseiro.

—Eu concordo com o Merval Pereira (colunista do GLOBO) que a MP é um excludente de ilicitude da Covid-19.

Em no meda pandemia,o agente vai praticar tudo que ele quiser. O conceito ficou de tal forma escorregadio que você não consegue mais dizer o que é isso aqui —diz.

Para o advogado Alessandro Azzoni, especialista em direito administrativo, aM Pé uma “afronta à responsabilidade do agente público”. Ele diz que já existe um alei específica para isso, a Leide Improbidade Administrativa, eque “parece um prenúncio de uma situação catastrófica para a qual o presidente da República está se precavendo”.

— O agente público já tem sua proteção. Ele tem o direito de ampla defesa, do contraditório, de não poder ser demitido sumariamente. O processo do funcionário público já tem uma distinção do setor privado. Jamais será atribuído um dolo ou culpa a ele sem o devido processo. Não é preciso uma MP para justificá-lo —afirma ele.

BOLSONARO CITA BC

De manhã, ao deixar do Palácio do Planalto, Bolsonaro foi questionado sobre a MP, mas não soube dar detalhes:

— Vou ver isso aqui agora quando chegar lá (no Planalto) —respondeu.

De noite, em transmissão em suas redes sociais, o presidente disse que a medida estava sendo mal interpretada:

— Alguns começaram a falar, e isso pega, né, que é MP para proteger possíveis fraudes nos estados. Não tem nada a ver isso, nada a ver. É uma MP que trata da compra de crédito. Pode explicar para a gente, com palavras bastante simples, Pedro? — disse, dirigindo-se ao presidente da Caixa, Pedro Guimarães, que participou da transmissão.

Guimarães, então, explicou que o BC está autorizado a comprar créditos, mas que isso ocorre em grandes quantidades, e os funcionários não podem ser responsabilizados por falhas isoladas.

—Você vai fazer uma compra de 100 mil carteiras. Se uma ou duas ou três tiverem fraude, você não generaliza o problema para todo o Banco Central. É simples, presidente —argumentou.

O agente público já tem sua proteção. Ele tem o direito de ampla defesa, do contraditório, de não poder ser demitido sumariamente. O processo do funcionário público já tem distinção do setor privado.

Alessandro Azzoni, advogado

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Medida é criticada por STF, TCU e parlamentares

15/05/2020

 

 

Dois ministros do Supremo dizem que texto é inconstitucional; oposição vai à Justiça, e, para Maia, plenário da Câmara decidirá

A medida provisória (MP) que flexibiliza a punição de agentes públicos por atos administrativos assinados durante a pandemia da Covid-19 foi recebida com críticas por ao menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), José Múcio Monteiro, e por líderes da oposição. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que o plenário é que vai decidir sobre o texto.

Para um ministro do STF, a MP é “manifestamente inconstitucional”.

— É uma medida de “graça”, assim como no indulto de Natal. Uma carta de alforria para praticar ilegalidades. Parece carta branca para delinquir — disse ao GLOBO, em caráter reservado.

O mesmo ministro ponderou que, durante a pandemia do coronavírus, já vieram a público casos de venda superfaturada de equipamentos de saúde. Como a medida provisória entra em vigor imediatamente após publicada, esse tipo de situação poderia ficar impune. Outro ministro, ouvido também em caráter reservado, ponderou que, apesar de não ter lido o texto, considerou “estranho” o governo se antecipar para anistiar eventuais casos de corrupção.

Líderes da oposição já se mobilizam para derrubar a medida. Cidadania, Rede e PSOL anunciaram que irão ao Supremo para anular a vigência da MP . Presidente do

Cidadania, Roberto Freire escreveu, em suas redes sociais, que Bolsonaro tenta “se eximir de responsabilidade pelos descalabros cometidos no combate à Covid-19”.

PEDIDO DE DEVOLUÇÃO

Já o PSB e o PSOL enviaram ofício ao presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para que a MP seja devolvida ao governo. No documento assinado pelo líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), a sigla argumenta que o texto viola o artigo 62 da Constituição, que estabelece as condições para a edição de MPs.

— A Medida Provisória 966 é a prova de que Bolsonaro quer se eximir das irresponsabilidades que comete todos os dias, arriscando vidas. O Brasil tem um presidente que atua em interesse próprio e de maneira inconstitucional, pois uma lei não pode mudar o que a Constituição já determina em relação a como agentes públicos respondem por suas ações. Esta MP precisa ser devolvida já — disse Molon.

O presidente da Câmara reconhece que a MP é polêmica, mas que não cabe a ele decidir sobre uma possível devolução do texto ao Palácio do Planalto. Ainda segundo Maia, a medida não foi discutida durante a reunião que teve com o presidente na tarde de ontem.

— Olha, tem muita polêmica. Tem alguns advogados que consideram a medida provisória inconstitucional e outros estão defendendo. Essa decisão que alguns me cobram de devolver ou não a medida provisória não é uma atribuição do presidente da Câmara, é do presidente do Congresso. Então, não me cabe avaliar essa parte. Ela chegando na Câmara e tramitando, eu vou escolher um relator, nós vamos tramitar, e o plenário vai decidir se ela é constitucional, se inconstitucional, ou se precisa ser modificada para que não pareça que algum agente público está sendo protegido —disse.

Presidente do TCU, José Múcio Monteiro afirmou que foi surpreendido com a edição da MP ontem. Segundo ele, a medida é desnecessária porque “as coisas estão funcionando” e ressaltou que todas as ações adotadas pelo Executivo no enfrentamento da pandemia estão sendo monitoradas pelo tribunal.

— Pelo que parece, essa MP blinda todo mundo — disse José Múcio, acrescentando que vai aguardar os desdobramentos, no Legislativo e no STF para definir quais providências poderão ser tomadas no âmbito do tribunal de contas.

José Múcio acredita que a intenção do governo foi, de alguma forma, preservar o bom gestor, mas que é preciso tomar cuidado para não proteger o mau gestor que usa o dinheiro público em benefício próprio.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) informou que Comissão de Estudos Constitucionais da entidade vai realizar reunião extraordinária na próxima segunda-feira para analisar a MP.