O globo, n. 31632, 15/03/2020. País, p. 18

 

Entrevista - Delfim Netto: "Espero que o coronavírus dê ao presidente um pouco de humildade"

Delfim Netto

Letícia Sander

Eduardo Salgado

15/03/2020

 

 

Para ex-ministro da Fazenda, Jair Bolsonaro terá de aprender que um presidente pode muito, mas não pode tudo e, por isso, precisa negociar com o Congresso

Antonio Delfim Netto tem um dos mais longevos currículos no poder. Somando suas experiências nas pastas da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento, foi ministro por mais de 13 anos entre as décadas de 1960 e 1980. A partir de 1987, foi deputado federal por 20 anos. Hoje, com 91 anos, o ex-professor de Economia da Universidade de São Paulo e ex-embaixador do Brasil em Paris segue atento observador da cena política brasileira.

Em entrevista por telefone para evitar contatos pessoais em tempos de coronavírus, Delfim explica por que o país precisa de um choque. Na sua visão, a crise atual é de grandes proporções, e o presidente Jair Bolsonaro deveria aprender a ser mais humilde e a negociar. Para o ex-ministro, a decisão do Congresso, na semana passada, de aumentar o gasto público mostra que “a inteligência nacional acabou”.

O senhor disse há alguns dias que, diante das atuais circunstâncias, só um choque de confiança tira o país do buraco. O governo Bolsonaro e o Congresso têm condições de fazer isso?

Eu acho que têm. Esse choque, na minha opinião, é devolver para a sociedade a certeza de que estamos no comando do processo de restabelecer o equilíbrio fiscal. Não adianta insistir, as condições são muito diferentes do passado.

Como seria esse choque?

Seria restabelecer a possibilidade de controlar o gasto através da PEC emergencial. Quem é contra tem argumentos ridículos. Dizem que a PEC cortaria o salário do funcionalismo e causaria recessão. Não. Simplesmente transformaria despesa de custeio em oportunidade de investimento.

O Congresso, na semana passada, afrontou o presidente com a derrubada de um veto que aumenta os gastos públicos.

Naquele dia, eu passei três ou quatro horas na frente da TV. E tive um choque. A inteligência nacional acabou.

O presidente usou o pronunciamento em cadeia nacional na quinta para reafirmar o enfrentamento com o Congresso. Esse conflito vai produzir que consequências?

O Bolsonaro começou tudo isso. Ele foi eleito por 39% dos eleitores. Podiam votar 147 milhões e ele teve 57,7 milhões de votos, ou seja, ele não foi eleito pela maioria nacional. Portanto, deveria saber o seguinte: ele não recebeu de Deus, todo poderoso, a missão de salvar a pátria amada sozinho. Além disso, o partido pelo qual ele foi eleito, o PSL, não chegou a ter 10% do Congresso. Ora, um presidente numa democracia que não tem 10% do Congresso só tem um caminho: a política. Mas ele achou que toda a política era pecaminosa. Ele nunca entendeu o exercício republicano da política.

Bolsonaro foi eleito com a bandeira de mudar as relações entre governo e Congresso. Ele não estaria, portanto, apenas cumprindo uma promessa de campanha?

Bolsonaro não recebeu o poder para fazer o programa dele. Ele não fez a maioria no Congresso. Esse raciocínio é uma confusão mortal. O presidente pode muito, mas não tudo. O presidente pode tudo o que a Constituição permite e que o Congresso aceite. Ele não foi eleito para esmagar a minoria.

Quando Bolsonaro minimizou o impacto do coronavírus, muitos lembraram da frase da “marolinha” de Lula, quando se referiu à crise de 2008. Ele pode sofrer desgaste político em virtude de sua postura diante do início da crise?

Não. Tudo o que Bolsonaro fala contra a ciência, contra as evidências empíricas aceitas por quem tem um mínimo de razão, agrada ao eleitorado que o elegeu. Ele não tem desgaste com essa parte do eleitorado. O desgaste foi com pessoas como eu, que votaram nele em legítima defesa e hoje não votariam. Ele teve 39% dos votos daqueles que poderiam votar. Eu suspeito que aqueles que votaram nele por legítima defesa são entre 8% e 10%. Ele tem hoje os seus 30%, o núcleo duro. E o Congresso e a Constituição têm o poder de controlá-lo.

Qual é a chance de Bolsonaro aprender com a crise do coronavírus?

Eu espero que o coronavírus dê ao presidente um pouco de humildade. Parece que ele está morrendo de medo de estar infectado. Então quem sabe nas suas orações Deus lhe diga: “Olha, seja um pouco mais humilde, porque a ciência foi também eu quem criou”.

Como o senhor vê a trajetória do ministro da Economia, Paulo Guedes, até aqui?

O Guedes tem um programa que foi a cereja do bolo do Bolsonaro. Mas o Guedes não teve condições. Se Bolsonaro tivesse sido eleito com mais de 50% dos votos mesmo, se tivesse dois terços do Congresso, acabou. Ia lá e resolvia. Iria continuar tendo que respeitar as minorias, porque é isso o que diz a Constituição, mas teria poder para fazer todas as tolices que quisesse. E até as boas coisas possíveis. Mas não teve.

Diante do coronavírus, Guedes pediu ao Congresso a aceleração da aprovação de 19 projetos.

Quem tem 20 prioridades não tem nenhuma. Ele devia ter dito que a prioridade é a PEC Emergencial, para restabelecer o controle de despesas.

O senhor, que já foi conselheiro de Lula e Dilma, tem mantido diálogo com esse governo?

Nunca fui conselheiro de ninguém. Sempre digo: o Lula é um diamante bruto que soube aproveitar o momento, fez uma administração razoável, deixa as lambanças aí de lado, mas fez uma administração razoável. A Dilma eu acho, pessoalmente, a coisa mais honesta do mundo. Perdeu-se quando, em 2012, adquiriu um voluntarismo enorme. Pôs a mão na energia e nos juros e aí destruiu tudo o que estava feito. Sobre este governo, não tenho diálogo e nem quero ter. O Guedes é um homem competentíssimo. Não precisa de conselho de ninguém.

O Bolsonaro está cercado de militares no Planalto. Como o senhor vê a relação dele com as Forças Armadas?

General da reserva é civil aposentado.

Mas também há pessoas da ativa na equipe.

Esses estão saindo rapidamente. Não podemos misturar as coisas. As Forças Armadas institucionais não têm nada a ver com o governo. São preparadas para o seu papel, não para administrar o país.

Como o senhor vê a influência dos filhos do presidente na administração?

Uma das grandes contribuições de Bolsonaro é a filhocracia. Democracia é o direito do povo. Filhocracia é o direito dos filhos.

O coronavírus mudou a sua rotina?

Claro que sim. Aos 91 anos, estou ficando um pouco mais quieto, indo menos a restaurantes. Procuro ter menos contatos.

Como cidadão, o senhor se sente seguro com a condução do governo nessa crise ?

Se tem alguém hoje que me dá orgulho é o ministro Mandetta. Não há nenhum problema no Brasil para enfrentar o coronavírus. Temos capacidade técnica, temos recursos. Isso vai passar em cinco, seis meses, mas vai provocar uma destruição muito séria.

O senhor está no rol de investigados pela Lava-Jato.

Eu estou muito tranquilo. Organizei um consórcio que competiu na bolsa, ganhou na bolsa. O MP acha que o concurso na bolsa é fajuto e vou esclarecer isso. A Lava-Jato cumpriu um papel muito importante, embora com um certo exagero. Realmente foi um ponto de inflexão na História do Brasil.

“Bolsonaro não recebeu o poder para fazer o programa dele. Ele não fez a maioria no Congresso. Esse raciocínio é uma confusão mortal”