Correio braziliense, n. 20868a , 12/07/2020. Cidades, p.18/19

 

A batalha dos profissionais das UTIs na pandemia

Roberta Pinheiro

Thais Umbelino

12/07/2020

 

 

O Correio detalha como funciona e quem são os responsáveis pelo setor reservado para pacientes graves, com risco de morte e em situação instável. Ala bem-equipada e atendimento rápido podem salvar a vida de uma pessoa

O silêncio do ambiente interrompido pelo som de aparelhos, algumas conversas e passos no corredor. O cenário se une à complexidade do trabalho diário nas unidades de terapia intensiva (UTIs). “Geralmente, o que vem na nossa cabeça é que a pessoa na UTI está muito mal, que ela vai morrer. É uma concepção errada. Ali, não é o lugar onde a pessoa deveria passar seus últimos momentos. É um lugar, sim, para o paciente crítico, grave, mas recuperável e onde há uma assistência mais intensa tanto na quantidade maior de equipamentos voltados para esse paciente quanto com uma equipe especializada, com profissionais diferenciados, para um atendimento mais próximo, que traga segurança à pessoa internada”, detalha o presidente do Conselho Regional de Enfermagem (Coren-DF), Marcos Wesley Feitosa.

Em meio à pandemia do novo coronavírus, os olhares voltaram-se para as unidades de terapia intensiva (UTIs). As medidas de distanciamento e isolamento social, tomadas por governadores e recomendadas por autoridades de saúde, tinham, como um dos principais objetivos, o ganho de tempo para preparar leitos de UTI suficientes para atender aos pacientes graves acometidos da doença. Com o avanço da disseminação e do contágio do novo vírus, as estatísticas de ocupação dos leitos passaram a ser monitoradas diariamente, bem como a cobrança e o anúncio da aquisição de ventiladores e respiradores.

Isso porque, entre os sintomas mais comuns da covid-19, está justamente a dificuldade respiratória. Além disso, de acordo com o médico intensivista e presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira regional DF (Amib/DF), Rodrigo Biondi, apesar de 85% das pessoas desenvolverem uma forma mais leve da covid-19, 5% ficam graves. “E, desses 5%, a mortalidade é relativamente alta”, detalha.

De acordo com dados da sala de situação da Secretaria de Saúde, o DF tem, no total, 627 leitos para pacientes com covid-19 com suporte de ventilação mecânica. Destes, 160 estão vagos, ou seja, 26% do total. Segundo a infectologista Valéria Paes Lima, o mais importante em uma UTI é garantir atendimento imediato ao paciente. “Se ele tiver qualquer piora clínica, isso é percebido rapidamente. Em caso de alguma intercorrência, é possível realizar, em um curto espaço de tempo, o tratamento adequado”, explica. Para isso, são utilizados diversos equipamentos e materiais, que permitem tanto a monitorização contínua do estado de saúde do acamado quanto o uso deles para estabilização do quadro clínico.

Conforme a Resolução nº 7, de 24 de fevereiro de 2010, publicada pelo Ministério da Saúde e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), UTI é uma área crítica, destinada à internação de pacientes graves, que requerem atenção profissional especializada de forma contínua, materiais específicos e tecnologias necessárias ao diagnóstico, monitorização e terapia. Os leitos são a ponta do iceberg, como descreve Farid Buitrago, presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM/DF). “Por trás, tem uma série de suportes para implementar todas as medidas necessárias para a recuperação da saúde do paciente, pessoal qualificado e monitoramento constante para dar suporte de vida à pessoa que está passando por uma situação difícil”, ressalta.

O responsável técnico de uma UTI deve ser especialista em medicina intensiva, como regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em abril. “Diferentemente de outras especialidades, que a gente se dedica a um órgão ou sistema do corpo, estudamos todos os sistemas no paciente grave ou com risco de ficar grave. Nas outras formações, os profissionais cuidam de pessoas não graves, mas também são atentos às situações de prevenção e manutenção da saúde. Enquanto isso, o intensivista foca na fase mais aguda”, revela Biondi. No entanto, o médico intensivista na UTI é como se fosse um maestro dentro de uma equipe multidisciplinar.

Sobrecarga

Enfermeiros preocupados com o melhor cuidado; fisioterapeutas atentos aos parâmetros do respirador e ansiosos para tirar o paciente do leito; farmacêuticos atentos às possíveis interações medicamentosas; nutricionistas empenhados em atingir as metas calóricas do paciente; psicólogos analisando o cenário familiar; fonoaudiólogos analisando os riscos da alimentação; e técnicos em enfermagem com olhar atento à organização do leito. “Turno 24 horas, equipe multidisciplinar com, no mínimo, enfermeiro, fisioterapeuta, técnico de enfermagem, farmacêutico, psicólogo e odontólogo e monitorização são as características mais fortes na medicina intensiva”, conta o médico Rodrigo Biondi.

Para atuar em uma unidade de terapia intensiva, é necessário preparo. “Para ser esse maestro, você precisa de um treinamento muito intenso”, comenta Biondi. Além de todos os cuidados com a saúde, o dia a dia envolve decisões críticas. “O ideal é que esses ambientes sejam ocupados por profissionais que estudaram um pouco a mais de forma específica. Mas, na realidade, o que a gente vê não é isso. São profissionais generalistas que vão aprendendo no dia a dia. Não é que seja errado, mas o ideal é que esse serviço fosse ocupado por profissionais especialistas. Esse aprendizado também sobrecarrega quem já atua na área”, complementa o presidente do Coren-DF.

Paixão e desafio

A enfermeira Gláucia Gimenes, 43 anos, não teve dúvidas na área em que se especializaria. “Sempre gostei da terapia intensiva. Na UTI, por ser um ambiente mais crítico, seguro e controlado, é possível fazer um planejamento e direcionar para onde o paciente vai. Consequentemente, isso te dá maior autonomia, e o ambiente é bastante dinâmico”, avalia. Há 18 anos na área, Gláucia não se arrepende da decisão. “Não me vejo fazendo outra coisa. Parece pesado — e é —, mas é onde consigo dar o meu melhor. Como se eu apresentasse a minha melhor versão de quem eu posso ser para o paciente naquela hora”, relata.

Apesar da paixão, lidar com o emocional é um dos desafios. “O peso da responsabilidade é muito grande. Qualquer erro, para mais ou para menos, custa a vida do paciente. Além disso, são vários perfis de tratamento, e o clima de confinamento agrega um pouco mais de peso no emocional. Você lida com o pior e o melhor dia do paciente, que é a entrada e a saída dele. É uma balança emocional muito grande de muitos altos e baixos”, explica Gláucia.

Pollyana Barbosa de Lima, 30, queria ser jornalista desde pequena, mas acabou se formando em fisioterapia e, dentro do curso, nasceu o interesse pelo cuidado intensivo. Desde 2013, quando fez a residência, ela atua na área. “Ver os pacientes mesmo. A vitória deles é a minha vitória. É muito bom participar disso. E, em UTI, é o momento em que estão mais vulneráveis e precisam da gente. Então, cada pequena melhora é um grande ganho”, conta.

Dentro de uma unidade de terapia intensiva, o papel do fisioterapeuta é, principalmente, promover, restaurar e preservar a funcionalidade ao paciente. Fisioterapia respiratória, cardiovascular e em terapia intensiva são as principais áreas. “Ela visa o tratamento de uma forma integral”, acrescenta Pollyana. Com a equipe médica, ela conduz ajustes nos parâmetros de ventilação mecânica invasiva e não invasiva, atua para evitar o mínimo de lesões possíveis, para que o paciente tenha um retorno mais rápido, o que ajuda, inclusive, na liberação de leitos.

Adaptação

Com a chegada do novo coronavírus, Pollyana percebeu um número maior de casos no hospital onde atua. Lá, a fisioterapeuta não trabalha especificamente com uma estrutura de UTI, mas em um espaço para que o paciente possa ser estabilizado e aguarde uma vaga de leito de UTI. “Com a adaptação de outras unidades hospitalares, como o Estadio Nacional Mané Garrincha, tentamos manter um fluxo de pacientes, mas os da covid não são de resolução rápida. Necessitam de um pouco mais de tempo. Como dependem de oxigênio e ventilação mecânica, não tem como ter uma rotatividade tão alta”, comenta. Sem falar nos pacientes que procuram a unidade de saúde e precisam do atendimento, mas não estão contaminados pelo vírus.

Diante do agente infeccioso novo, os processos vão amadurecendo com o decorrer das dinâmicas de trabalho. “Cada dia a gente vai se adaptando um pouco mais, surgem novas evidências. O princípio básico, de manter a função respiratória com o mínimo de lesão possível, de maneira gentil, se mantém. Mas é um aprendizado contínuo”, diz.

Equipe coordenada

Em momentos de crise na área da saúde, como a pandemia da covid-19, porém, o cenário ideal se altera e outras medidas são tomadas como protocolos. “Estamos em um momento em que muitos estão precisando da UTI; por isso, há necessidade da adaptação de protocolos. Mas o ideal é que as medidas sempre respeitem os requisitos mínimos para funcionamento das UTIs”, esclarece a infectologista Valéria.

Se, na rotina normal, a jornada de trabalho em uma unidade de terapia intensiva é pesada pelo tipo de paciente internado, o novo coronavírus exacerbou o atendimento. Máscara especial, face shield, proteção para os olhos, touca, 12 horas com a mesma roupa, dificuldade para comer e beber água, escalas extras para render os novos leitos abertos e também os profissionais que adoeceram no trabalho. “São cargas muito maiores: física, emocional, de trabalho em si. Em uma UTI covid são todos pacientes muito graves, não dá uma diluição. Para 10 leitos, eu tenho oito ou nove muito graves. Essa carga física contribui para que as pessoas fiquem doentes. Existe ainda o risco de contaminação associado. Vemos pessoas morrendo com mais frequência. Em uma UTI normal, falece um paciente a cada semana. Na covid, dependendo do número de leitos, todo dia tem um óbito, ou um óbito a cada dois dias. Isso abate o psicológico”, afirma Rodrigo Biondi, médico intensivista e coordenador de uma UTI.

O impacto na atuação e na saúde dos profissionais de saúde é outro fator observado pelo enfermeiro Marcos Wesley Feitosa. “A UTI não pode parar, e os servidores estão se contaminando e saindo da linha de frente. Para repor esse pessoal, é difícil, não acontece de forma imediata, pegam servidores que atuam em outros setores”, comenta o profissional. Para ele, ainda há dificuldades na questão de treinamento dos recém-chegados, ação que deveria fazer parte dos protocolos, das exigências, e não acontecer em um momento de guerra, como a realidade enfrentada nos hospitais hoje. “Os profissionais deveriam receber treinamento com simulações realísticas. Não estar preparado pode levar à contaminação do paciente, da equipe, dele mesmo, pode aumentar o tempo de internação e pode até colaborar com um desfecho negativo”, avalia Marcos.

Recuperação

O conhecimento de um intensivista também é necessário para o manuseio de insumos e aparelhos exigidos nos leitos. “Uma terapia intensiva não é um time que joga sozinho, são várias pessoas que fazem uma função coordenada por profissionais mais experientes. Diferentemente de período anteriores, a pandemia do novo coronavírus traz uma quantidade de pacientes em estado grave. Eles vão para os aparelhos ventiladores e evoluem com disfunções orgânicas em maior velocidade, ou seja, se você não tiver profissionais especialistas com recursos adequados, o desfecho de morte aumenta muito”, ressalta o médico intensivista Marcelo Maia.

Como chefe da UTI do Hospital Santa Luzia e da UTI do Hospital DF Star, o objetivo de Marcelo é sempre incentivar os especialistas da equipe. “A função do coordenador é manter esses times sempre estimulados, apesar da exaustão profissional causada pela pandemia. O objetivo final é sempre a recuperação do paciente. O que nos move a atuar é ver um paciente recuperado e saindo da unidade. A gente vive esse quadro de pacientes graves há muitos anos, fomos lapidados para fazer isso, mas agora é a hora de fazermos a diferença”, ressalta o médico intensivista.

627

Total de leitos com suporte de ventilação mecânica para pacientes com a covid-19

160

Ainda estão vagos

26%

Porcentagem de vagas em aberto nos leitos disponibilizados pela Secretaria de Saúde