O globo, n. 31692, 14/05/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

Relatos de um dia a dia sem fim

Janaina Figueiredo

14/05/2020

 

 

Jornadas intermináveis de trabalho que já os levaram a um nível nunca antes sentido de exaustão física e, principalmente, emocional. Com o sistema de saúde público colapsado e o privado saturado, já registrando demoras no processo de internação, médicos intensivistas que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus temem que a baixa adesão ao isolamento social em estados como o Rio possa provocar uma crise sanitária.

As imagens de pessoas caminhando nas ruas, em muitos casos aglomeradas, são hoje um de seus principais motivos de angústia, conforme contaram ao GLOBO. Dentro dos hospitais onde trabalham, afirmam nunca terem cuidado de tantos pacientes em estado tão grave, ao mesmo tempo. Diante de uma doença para a qual ainda não existe tratamento, afirmam estar “trocando pneus com os carros andando”.

Alguns casos provocam baques profundos, sobretudo quando devem entubar algum médico conhecido ou até mesmo amigo. Num Brasil que hoje já é o sétimo país mais afetado do mundo pelo novo coronavírus, com 188 mil contágios e 13.149 mortes, os intensivistas sentem que o pico alcançado pode acabar virando um platô pelo afrouxamento das medidas de distanciamento social. No Rio, já são 18.728 infectados e 2.050 óbitos.

Para estes médicos, cada morte é uma derrota difícil de digerir e, em alguns momentos, eles choram copiosamente pela impotência de não conseguir salvar mais vidas.

DEPOIMENTOS

 ‘Tive de intubar um residente meu de 29 anos, foi muito duro’

Dr. Rodolfo Espinoza / INCA E COPA STAR

O Dia das Mães foi a primeira vez que não pisei num hospital em três meses. No Inca, por falta de recursos humanos, passei a dar assistência no plantão. Nos hospitais particulares do Rio já falta vaga em alguns períodos, sobretudo na Zona Sul. Em muitos momentos temos 100% de ocupação na rede privada. Sou intensivista há 20 anos, nunca vivi nada parecido. Sou coordenador de CTI na rede privada e estamos ampliando os leitos permanentemente, lidando com falta de médicos, contratando profissionais, dando ânimo à equipe. Quem fica doente volta da quarentena querendo ajudar. Isso é muito bonito. Mas também é verdade que existe medo. Na semana passada, tive de intubar um residente meu de 29 anos, foi muito duro. Temos colegas internados, muitos com respirador e em estado grave. Nunca vi tanto doente grave em quantidades tão grandes.

A mortalidade é maior do que está sendo apresentada, e me parece impressionante que algumas pessoas ainda neguem essa realidade. No Inca, a Covid-19 está tomando conta de todos os leitos, e nosso medo é que afete os tratamentos oncológicos. O grande dilema é se tratamos as doenças que são dependentes, as que precisam de uma cirurgia ou quimioterapia, ou evitamos expor nossos pacientes ao coronavírus. Sou casado e tenho três filhos, os dois mais velhos moram com minha primeira mulher, vejo pouco. O pequeno, de 2 anos, me vê saindo de casa cedo e voltando tarde. Sabemos que será assim por muito tempo.

Dra. Roberta Lima / HOSPITAL DA UFF ECOPA D'OR

‘A mascara machuca nossos rostos, tudo vai gerando uma angústia muito grande’

Fiquei viúva há dois anos e tenho uma filha de 8 anos que se chama Clara. Trabalho muitas horas, alguns dias chego meia-noite, e minha filha está lá me esperando para brincar de amarelinha. Sou asmática, ainda não me contagiei e espero continuar assim. Estamos todos preocupados pela saturação dos hospitais. Já redistribuímos vários setores do hospital e hoje vários andares são CTIs de Covid. Por isso o isolamento social é tão importante. Hoje temos medo de um pico maior pelo afrouxamento. Algumas pessoas preferem não enxergar o que está acontecendo, querem manter sua vida como sempre foi. Vejo muita gente sem ligação coma realidade, até mesmo pessoas próximas.

Também temos dificuldades pelo estresse que vivemos. Tratamos doentes muito graves, que desenvolvem muitas disfunções ao mesmo tempo. Isso vai exigindo um trabalho braçal enorme. São muitas horas, a máscara machuca nossos rostos, tudo vai gerando uma angústia muito grande. No sistema público é ainda piore já soubemos de casos de enfermei rasque tiveram o chamado arrancaram tudo nomeio de um plantão e foram embora. Alguns casos são muito difíceis de lidar. Tive um homem que faleceu e seu filho não quis entrar para reconhecer o corpo, tinha medo de se contagiar. Não quis sequer me dar o celular dele para tirar uma foto. Acabei tirando com o meu. Tentamos nos manter em equilíbrio. Faço meditação, escrevo, busco maneiras de canalizar o estresse.

‘O ambiente é propício para casos de esgotamento físico e mental’

Dr. Luiz Simvoulidis / HOSPITAL DA UNIMED, NA BARRA

No domingo do Dia das Mães, me vi chorando copiosamente quando perdi uma paciente de 70 anos, que tinha três filhos. Tive que informares safam ília que ela não tinha conseguido sobreviver. Eu aconheci no hospital, ainda estava lúcida. Rapidamente apresentou uma piora importante, foi levada para o CTI com falta de are em menos de 24 horas estava intubada.

Na véspera da morte, quando vi que ocaso estava ficando muito grave, ofereci aos filhos que enviassem uma mensagem pelo celular. Foi uma angústia muito grande, uma sensação de impotência. Não temos muito o que fazer, esta é uma doença nova sobre a qual sabemos muito pouco. Estamos trocando pneus com os carros andando. Essa mulher era uma pessoa saudável, sua morte foi um baque. Hoje temos 54 pacientes, quase o dobro do que costumávamos ter em nosso CTI, e a demanda está aumentando. Nosso maior limite são os recursos humanos, porque precisamos de atendimentos especializados e você não consegue formar intensivistas em todas as especialidades.

O ambiente é propício para casos de esgotamento físico e mental. Precisaríamos dar folgas para que as pessoas fizessem uma higiene mental, mas muitas vezes não podemos porque ficamos sem profissionais. O que mais nos dá alento é ver os pacientes que se recuperam, isso nos mostra que o esforço vale apena. Hoje, o que nossalvaé o isolamento. Se ele afrouxar, chegaremos ao nosso limite. Sem isolamento, já estaríamos num ponto de ruptura.

‘Não há leitos suficientes, por isso o isolamento é tão necessário’

Dr. David Sulfiate / CENTRO HOSPITALAR DA FIOCRUZ, CLEMENTINO FRAGA E COPA STAR

Desde que a pandemia começou, minhas jornadas de trabalho se ampliaram de forma expressiva. Estou trabalhando 130 horas por semana, bem acima das 90 de costume. Gostaria que todos pensassem mais no outro, porque a Covid-19 afeta a todos, qualquer pessoa pode adoecer. Eu não falaria em colapso do sistema privado, mas sim em saturação. Em muitos hospitais públicos já não se consegue vaga, sobretudo nas unidades que chamamos deportas abertas, essas são os que estão em estado mais crítico.

Vemos casos graves em todos os hospitais, esta doença diminui as distâncias sociais, temos pacientes em estado muito delicado nos hospitais públicos e privados, e perdemos pacientes em todas as redes. Nosso trabalho é incansável e o que mais nos desgasta é o contato com os pacientes, porque não somos apenas médicos, acabamos sendo também psicólogos, ajudamos a conter a angústia que sentem. Lidamos com desfechos desfavoráveis todos os dias, é uma situação que exige demais da gente. Exige estabilidade emocional em dias em que, no meu caso, cheguei a perder sete pacientes em 24 horas. Os doentes estão assustados, ficam sozinhos,é muito difícil.

Vemos colegas morrendo, professores de faculdade, amigos. Perdi um professor que tinha 41 anos. Estamos num pico, mas no Brasil esse pico será um platô por nossa dinâmica social. As aglomerações continuam e, assim, os doentes continuarão chegando. Para acurva que se espera, não há leitos suficientes, p orisso o isolamento é tão necessário.