O globo, n. 31692, 14/05/2020. Opinião, p. 2

 

Fraudes na pandemia expõem a degradação das compras públicas

14/05/2020

 

 

No país do mensalão, do petrolão e de tantos outros escândalos superlativos em que os cofres públicos são saqueados sem dó, não deveria ser surpresa a descoberta da que pessoas inescrupulosas estão se aproveitando das compras emergenciais na pandemia para roubar. Mas, mesmo considerando a corrupção endêmica que assola o país há anos, essa prática criminosa assume proporções dantescas, diante das mortes de mais de 13 mil brasileiros pela Covid-19, muitos tendo perdido a vida antes mesmo de ter acesso a um atendimento digno, para ter chances de sobreviver.

Com pouco mais de dois meses de pandemia, os casos de roubalheira já começam a pipocar por todo o país. Operações policiais realizadas em diferentes estados têm trazido à tona dados estarrecedores. No Rio de Janeiro, que concentra o segundo maior número de vítimas pela Covid-19 — já são mais de 18 mil infectados e 2.050 mortos —, a operação Mercadores do Caos, da Polícia Civil e do Ministério Público, já prendeu cinco pessoas. São acusadas de fraudar compras emergenciais de mil respiradores, no valor de R$ 183 milhões. Entre os presos, estão o ex-subsecretário estadual de Saúde Gabriell Neves e o sucessor, Gustavo Borges.

Na semana passada, policiais foram às ruas em quatro estados (Rio, São Paulo, Mato Grosso e Santa Catarina) para cumprir 35 mandados de busca e apreensão contra membros de uma quadrilha suspeita de fraudes na compra de 200 respiradores para Santa Catarina. Em abril, o governo pagou R$ 33 milhões pelos aparelhos, que seriam utilizados em leitos de UTI, mas a encomenda não chegou. O secretário de Saúde que autorizou o negócio, Helton de Souza Zeferino, pediu exoneração.

Esses são apenas alguns exemplos, há muitos outros. Produtos comprados por preços bem acima dos de mercado, respiradores que não chegaram, ou que vieram, mas estão fora das especificações e não podem ser usados etc. Na verdade, a situação de calamidade pública em decorrência da pandemia impõe que os governos façam compras e contratações emergenciais, ou seja sem licitação. E disso, infelizmente, se aproveitam os saqueadores do dinheiro público. Uma demonstração da degradação ética a que se chegou neste mundo de compras do Estado. O fato positivo é que os órgãos de controle e as polícias estão agindo.

Se não há vacina contra desvios de dinheiro público, o único remédio é o acompanhamento dessas compras pelos órgãos de controle, como o MP. Pessoas que tiram proveito de situações trágicas, como a atual, precisam ser processadas e punidas exemplarmente.