O globo, n. 31701, 23/05/2020. País, p. 12

 

Salles sugere aproveitar pandemia para 'passar a boiada'

Victor Farias

23/05/2020

 

 

Em mês com desmatamento recorde e intervenção no Ibama, ministro quis usar Covid-19 para afrouxar leis ambientais
Oportunidade. Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril: ministro disse que 'alívio' sobre pautas ambientais deixou espaço para reformar diretrizes
No mês em que o desmatamento na Amazônia bateu recorde, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu que o governo aproveite a atenção da imprensa à pandemia do novo coronavírus para aprovar "reformas infralegais de desregulamentação e simplificação" na área do meio ambiente e "ir passando a boiada". A declaração foi feita durante a reunião ministerial de 22 do mês passado, tornada pública por decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), ontem. Salles afirmou que o governo tinha a "oportunidade" de passar reformas infralegais, enquanto a imprensa estava dando "um pouco de alívio nos outros temas", já que estava focada na cobertura da pandemia. "Então para isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas", disse o ministro, no vídeo. A declaração de Salles foi dada num momento em que a área ambiental é alvo de críticas de organizações no Brasil e no exterior e de uma intervenção no próprio governo. O desmatamento na Amazônia vem crescendo desde o ano passado e, em abril, chegou a 529 quilômetros quadrados, segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Em 2019, só o garimpo foi responsável pela destruição de 10,5 mil hectares de floresta na região, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A ONG Human Rights Watch também denunciou que a estrutura de fiscalização do Ibama está parada e, desde outubro, apenas em cinco casos os infratores foram obrigados a pagar por crimes ambientais. Em abril, um diretor do Ibama foi exonerado do cargo dois dias depois da divulgação de uma megaoperação do órgão para tirar madeireiros e garimpeiros ilegais de terras indígenas no sul do Pará. A resposta do governo foi autorizar o envio de tropas das Forças Armadas para combater focos de incêndio e o desmatamento na Amazônia, através de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) publicado no último dia 7. O vice-presidente Hamilton Mourão, no comando do Conselho da Amazônia, é quem tem coordenado as ações do governo federal.

 SEM APOIO

O ministro do Meio Ambiente disse ainda que seria difícil conseguir o apoio do Congresso para aprovar as mudanças, mas que muitas das reformas não precisariam do aval dos parlamentares. "Agora tem um monte de coisa que é só, parecer, caneta, parecer, caneta. Sem parecer também não tem caneta, porque dar uma canetada sem parecer é cana", defendeu. Salles afirmou ainda que era necessário deixar o advogado-geral da União, na época André Luiz Mendonça, de prontidão, para eventuais contestações de atos do governo na Justiça. As declarações do ministro geraram indignação entre ex-ministros e entidades ambientais, que expressaram repúdio pelo "desmantelamento das condições de proteção ambiental do país". A organização Greenpeace Brasil afirmou que Salles usa a morte das vítimas da pandemia "para passar violentamente essa política de destruição". "Salles acredita que as pessoas morrendo na fila dos hospitais seja uma boa oportunidade de avançar em seu projeto antiambiental. Acredita que a ausência dos holofotes da mídia, devidamente direcionados para a pandemia, seria o suficiente para fazer o que bem entende", lamentou, em nota, a porta-voz de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Luiza Lima. O WWF-Brasil, por sua vez, acusou Salles de evidenciar uma "estratégia de destruição do arcabouço legal de proteção ao meio ambiente no Brasil".

"Não é surpresa que o Ministro Ricardo Salles venha trabalhando, desde o início de seu mandato, para fragilizar as regras e as instituições criadas para defender nosso patrimônio ambiental", criticou a organização, em nota. Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente do governo Dilma Rousseff, afirmou que sua primeira reação foi de "estarrecimento".

— A fala dele reafirma as preocupações que os ex-ministros demonstraram em uma carta, escrita no ano passado, sobre os rumos da política ambiental — recorda. — Sobre a fala em si, não há o que comentar. Se ele prega mesmo um "libera geral", ele não é ministro do Meio Ambiente. Ele exerce o cargo. Para José Carlos Carvalho, ministro do Meio Ambiente no governo Fernando Henrique Cardoso, algumas ações recentes mostram como Salles tenta promover um desmonte do órgão durante a pandemia. —Salles aproveitou a onda (do coronavírus) para reduzir a estrutura do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação à Biodiversidade) e exonerar fiscais do Ibama — denuncia. — Também fez uma investida que poderia aumentar o desmatamento da Mata Atlântica, mas foi barrado na Justiça. E, a serviço dos interesses mais retrógrados, anistiou o pagamento de infrações ambientais e acabou com as reuniões do Conselho Nacional de Meio Ambiente. Em nota divulgada ontem, após a exibição do vídeo, Salles afirmou: "Sempre defendi desburocratizar e simplificar normas, em todas as áreas, com bom senso e tudo dentro da lei. O emaranhado de regras irracionais atrapalha investimentos, a geração de empregos e, portanto, o desenvolvimento sustentável no Brasil".

"Então para isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas" _

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente