O globo, n. 31703, 25/05/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Distantes do tratamento

Pedro Capetti

Gabriel Morais

João Paulo Saconi

25/05/2020

 

 

14,3 milhoes de brasileiros gastam ao menos duas horas para chegar a uma UTI

Não bastasse uma virose que o tinha deixado de cama, Paulo Neves, de 42 anos, ainda estava preocupado com o pai. O aposentado Justino Mendonça estava com Covid-19 havia dois dias, e o hospital da cidade, em Novo Aripuanã, no interior do Amazonas, onde a família vive, não tinha leitos de tratamento intensivo do SUS para atender pacientes graves como ele — o mais próximo estava a quase 1.400 km. Naquela tarde, em 4 de maio, Neves recebeu uma ligação da sobrinha: “O vovô morreu”. Mendonça faleceu dois dias antes de completar 80 anos, enquanto esperava um avião para levá-lo do município de 25 mil habitantes, que já registrou quatro óbitos, até Manaus.

—A situação é ruim, tem só um hospital na cidade, e mistura quem tem coronavírus e quem está com outros problemas —lamentou Neves.

Novo Aripuanã é a cidade mais distante de um leito de UTI por vias terrestres no Brasil. É necessário encarar 21 horas de viagem para chegar a uma unidade de saúde pública, em Manaus. E esse cenário não é a exceção. Levantamento feito pelo GLOBO com base em dados do Ministério da Saúde e do Google mostra que 14,3 milhões de pessoas estão a pelo menos duas horas, de carro, de uma UTI do SUS para adultos.

SEM LIGAÇÃO TERRESTRE

Outros dois milhões, distribuídos em 77 cidades, não conseguem nem chegara uma unidade de saúde pública por via terrestre. Precisam encarar travessias de barco que podem durar cinco dias, ou viajar de avião. Para 40 milhões de brasileiros (quase 20% da população do país), é preciso gastar pelo menos uma hora até chegar à UTI pública mais próxima.

Especialistas afirmam que, por conta dos novos fluxos de pacientes entre regiões, os municípios deveriam pensar em medidas integradas de isolamento e atendimento em rede. Até ontem, 67% dos municípios do país já contavam com pelo menos um caso de Covid-19. A situação preocupa especialistas porque há um movimento crescente de interiorização da epidemia para municípios menores e sem condições de estabelecer barreiras.

— Medidas unilaterais não levam em conta are dede atendimento. Os prefeitos têm que conversar. Não dá para um acidade faze rea lockwdown outra, não—diz Diego Xavier, epidemiologista da Fiocruz.

Em abril, apenas 478 cidades contavam com leitos de UTI adulto do SUS. Enquanto no Sudeste e no Sul os polos de saúde estão mais bem distribuídos espacialmente, a situação é preocupante no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, regiões onde, superado o desafio de se conseguir uma vaga, ainda é preciso enfrentar dificuldades para chegar até elas.

Em Santo Antônio do Içá, no Alto Rio Solimões, uma das 77 cidades do país sem ligação terrestre a leitos, por exemplo, são cinco dias de barco ou três horas de avião até a UTI mais próxima. No município, que tem 40% da população indígena ,2% dos moradores já contraíram a doença, o maior índice do país. Dos nove moradores que morreram no local, só três chegaram a ser transferidos de avião para Manaus.

— Nos sentimos impotentes sabendo que há pais de família que vão morrer esperando um leito, uma UTI, e não vão conseguir. Não temos muito o que fazer, nem meios para tentar —diz Francisco Ferreira Azevedo, secretário municipal de Saúde.

No Amazonas, de acordo com o secretário-executivo adjunto de Atenção Especializada ao Interior, Cássio Espírito Santo, seis aeronaves têm auxiliado no transporte em municípios que não possuem acessoa leitos de U TI por via terrestre. Em média, são sete rotas diárias. Outra dificuldade é garantir o tratamento adequado para os casos graves:

— A hemodiálise só existe na capital, e esse é um dos motivos pelo qual a remoção se torna necessária.

Para Mônica Viegas, coordenadora do Grupo de Estudos em Economia da Saúde e Criminalidade, do Cedeplar/ UFMG, a construção de leitos de campanha no interior nem sempre é eficiente, diante da falta de garantia de recursos humanos e insumos, além da baixa densidade demográfica de algumas regiões:

— Dependendo da região é preferível estruturar uma logística de transporte bem organizada e tentar controlar a velocidade de propagação da pandemia.

Em São Paulo, onde a Covid-19 já atingiu 78% dos municípios, foi criado um sistema de gestão de leitos para dar prioridade aos pacientes com quadros respiratórios agudos. No estado do Rio, cerca de 200 veículos foram destinados às cidades, segundo a Secretaria de Saúde. No Rio Grande do Norte, há um plano para implementação de leitos de estabilização em todas as regiões e fornecimento de transferências através do Samu.

IDOSA MORRE SEM VAGA

A disponibilidade de transporte, no entanto, não é garantia de internação. Em Ipanguaçu, cidade no interior do Rio Grande do Norte que não conta com respiradores, Maria de Lourdes Oliveira ,72 anos, precisa vadeu ma remoção para Mossoró, cidade a 90 km que conta como equipamento. Diagnosticada com Cov id -19, debilitada e com comorbidades, ela foi colocada somente no oxigênio enquanto esperava a transferência. Foram feitos dois pedidos, em menos de 24 horas, ambos negados por falta de leitos. A família alega que havia vagas disponíveis, e o caso é investigado pelo Ministério Público do RN.

— No estado grave em que ela estava, era preciso a transferência. Disseram que não tinha leito, mas tinha. Tenho certeza que, se ela conseguisse um respirador, teria aguentado mais — diz Anne Caroline Oliveira, neta de Maria de Lourdes, que afirma que cidades com mais recursos negam leitos para pacientes de outros municípios.

A Secretária municipal de Saúde de Mossoró nega a acusação:

—Se ela não estava na prioridade 1,é que existiam outros comum aprioridade maior. É muito difícil fala risso para uma família—diz Adriana Cunha, coordenadora do sistema de regulação local.

Segundo ela , a rede não estava preparada para absorver a demanda extra de 44 cidades próximas. Mossoró, que tem 56 UTIs públicas, planeja expandira oferta com hospitais de campanha, masa falta de pessoal tem sido um empecilho.

Cidades sem UTI seque ainda não registram casos da doença já tentam se precaver. Em Bom Jardim de Minas, a 1h30 de carro de uma UTI em Juiz de Fora, o prefeito Ser gio Martins tomou uma decisão drástica. Isolou o município:

—Quer vir par acá? Tem que dar todos os dados e dize ronde vai ficar. Um agente de saúde vai te acompanhar até o local para se certificar que você irá ficar lá mesmo. Tem que ficar 14 dias de quarentena, e, acada 48 horas, um fiscal vaia o imóvel checar se você está bem, sem sintomas .

Para Diego Xavier, da Fio cruz, medidas como ade Bom Jardim são eficazes, mas, sozinhas, não impedirão a saturação da rede nas próximas semanas.

—Esperamos que o interior não tenha para onde mandar as pessoas. Os grandes (municípios) estão saturando e, quando os menores precisarem, não terão vaga.