O Estado de São Paulo, n.46243, 27/05/2020. Política, p.A10

 

Sem imprensa livre não há democracia

Felipe Santa Cruz

Marcelo Träsel

27/05/2020

 

 

Um dos pilares da democracia que estamos construindo, desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, é a liberdade de expressão e de imprensa. Infelizmente, no Brasil contemporâneo, algumas autoridades e militantes políticos radicais aparentemente desconhecem ou desprezam esse princípio constitucional e o papel do jornalismo. Em lugar de respeitar a função da imprensa e manter um ambiente de civilidade diante da fiscalização do noticiário, como fizeram todos os governos desde a redemocratização, alguns mandatários e servidores públicos respondem com injúrias dirigidas aos profissionais responsáveis por manter a sociedade informada.

Um levantamento da rede Voces del Sur, a partir de dados fornecidos pela Abraji, aponta que houve no Brasil 59 ocorrências de discurso estigmatizante contra jornalistas em 2019 e outras 39 em 2020, categoria na qual se incluem apenas ataques derivados de agentes políticos e agentes públicos. No caso de assédio virtual, foram computados 30 incidentes em 2019 e 20 no ano de 2020. Em relação à pandemia de covid-19, 24 violações à liberdade de imprensa foram detectadas entre 1º de março e 21 de abril, sendo 13 agressões e ataques a repórteres, 9 casos de discurso estigmatizante e dois assédios virtuais.

No atual governo, o assédio moral a jornalistas se tornou cotidiano. Nas entrevistas em frente ao palácio, o presidente responde às perguntas sobre indícios de corrupção ou incompetência em seu governo com frases como “pergunte à sua mãe”, dirige gestos obscenos ou ofensas homofóbicas e sexistas a repórteres, ou ainda faz críticas às empresas de comunicação, tudo sob aplausos de uma claque de militantes. Nas redes sociais, uma militância, muitas vezes conduzida por assessores pagos com dinheiro público, promove campanhas de difamação contra repórteres e veículos, se valendo inclusive de perfis falsos e robôs.

O resultado da ausência de civilidade do governo federal em sua relação com a imprensa são as agressões físicas a jornalistas noticiadas nas últimas semanas. Legitimados pelo discurso conspiratório e hostil do presidente, seus apoiadores atacam repórteres com bandeiras, empurram fotógrafos de cima de escadas ou quebram o dedo de cinegrafistas no exercício de sua função profissional e de seu papel como cidadãos. Isso precisa ter fim, porque é até possível existir algo semelhante a jornalismo num regime autoritário, mas é impossível a existência de uma democracia sem a fiscalização do poder pelos jornalistas.

Atentas à necessidade de garantir a segurança física e psicológica dos jornalistas, OAB, por meio do Observatório da Liberdade de Imprensa, e Abraji firmaram convênio para orientação jurídica de profissionais agredidos ou assediados. O livre exercício do jornalismo é condição fundamental para que exista liberdade de imprensa, garantida pela Constituição. Haverá orientação sobre medidas legais contra ameaças e assédio online, roteiro para reconhecer um abuso virtual e o passo a passo para denunciá-lo às autoridades brasileiras e às cortes internacionais de direitos humanos.

A insatisfação com a imprensa é um traço comum aos mandatários, e não só aqui no Brasil. Afinal, é papel da imprensa manter uma postura crítica e independente em relação a todos os Poderes instituídos. Esse monitoramento das ações das instituições, dos políticos e das autoridades é uma das mais relevantes contribuições para o debate público e para o fortalecimento da democracia. É um trabalho que não pode, em qualquer hipótese, ser cerceado nem confundido por qualquer que seja o governo com o papel da oposição, atividade a ser exercida por partidos e por outros setores organizados da sociedade – igualmente importante e digna de respeito quando exercida dentro da legalidade.

Portanto, nenhum tipo de violência ou assédio contra os profissionais da imprensa pode ser admitido. Nenhum tipo de ameaça de retaliação aos veículos que cumprem o dever de informar pode ser visto como razoável. Em qualquer democracia, é mister aceitar contraditórios e essencial rechaçar a violência como forma de solução dos conflitos.

Os sinais de uma democracia asfixiada frequentemente aparecem sob a forma de jornalistas e opositores sendo censurados, coagidos ou ameaçados. Ao primeiro sinal, é preciso dar um basta.

MARCELO TRÄSEL É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JORNALISMO INVESTIGATIVO (ABRAJI) 

FELIPE SANTA CRUZ É PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB)