O Estado de São Paulo, n.46241, 25/05/2020. Política, p.A5

 

Após vídeo, presidente cita Lei de Abuso

Emilly Behnke

Jussara Soares

Paulo Beraldo

Paulo Roberto Netto

25/05/2020

 

 

Para juristas, porém, legislação não se aplica à divulgação, pelo STF, da reunião ministerial

Aglomeração. Jair Bolsonaro abraça criança durante manifestação de apoio ao seu governo na Praça dos Três Poderes

Pouco antes de participar, como vem se repetindo aos domingos, de uma manifestação a favor de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro publicou ontem nas redes sociais o artigo 28 da Lei de Abuso de Autoridade, que fala da divulgação total ou parcial de gravações. “Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou imagem do investigado ou acusado. Pena – detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos”, escreveu.

A publicação ocorre dois dias depois de o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), levantar o sigilo do vídeo da reunião ministerial que o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro usa como prova de que o presidente teria tentado interferir na Polícia Federal e no dia seguinte à revelação, pelo Estadão, de novas mensagens trocadas entre Bolsonaro e o então ministro. “Moro, Valeixo sai esta semana. Está decidido”, afirmou Bolsonaro na conversa, contradizendo a sua versão de que Maurício Valeixo deixou o cargo de diretor-geral da PF por vontade própria.

O vídeo da reunião de 22 de abril é parte da investigação que apura a tentativa de interferência para obter informações sobre investigações que pudessem prejudicar seu núcleo familiar. As trocas no comando da corporação e na superintendência do Rio levaram à demissão de Moro, que revelou intenção do presidente em indicar delegados próximos para os cargos de comando da corporação.

Para o desembargador aposentado Walter Maierovitch, não faz sentido se falar em lei de abuso de autoridade no caso. Segundo ele, Celso de Mello deu toda a explicação que motivou tornar pública a quase totalidade do vídeo. “Todas as motivações têm apoio na lei e na Constituição. O tempo inteiro em sua decisão ele repete isso tecnicamente”, afirmou.

A lei de abuso só pode ocorrer em razão de uma atividade ilegal, diferente da atitude do ministro do STF, segundo Maierovitch. “O que ele fez está dentro de seu poder como ministro em uma apuração criminal. Ele ainda teve a cautela extra de dizer que não tinha ali nenhuma questão de segurança nacional, apenas a parte das relações internacionais, que ele pediu que fosse tirada.” Para Maierovitch, a “ignorância jurídica” do presidente incita o povo a querer enquadrar um ministro espalhando informações falsas. “Não tem o mínimo senso.”

Avaliação semelhante tem o professor de Direito Luiz Fernando Amaral, da Faap. “Só tenho a lamentar que o presidente apresente uma resposta como essa a uma decisão de um ministro do STF”, afirmou. “Não se tratava de uma gravação de um ato privado.” Amaral ainda destacou que a iniciativa de pedir a investigação partiu do próprio procurador-geral da República, Augusto Aras. “O ministro Celso de Mello, na prática, só está instruindo um inquérito para que o PGR faça um juízo se deve ou não denunciar o presidente.”

Helicóptero. Na manifestação de ontem na Praça dos Três Poderes, apoiadores do presidente, de forma isolada, exibiam mensagens contra o Supremo e a imprensa. “Abaixo a ditadura do STF”, dizia um dos cartazes. Em outro, uma referência à imprensa como “inimiga”. A presença de frases de tom antidemocrático contraria orientação da semana passada, quando Bolsonaro fez chegar a lideranças um pedido para não exibir faixas contra o STF e o Congresso.

Com direito à chegada de helicóptero e caminhada pela via em frente à Praça dos Três Poderes, Bolsonaro ficou meia hora no local e, por seis vezes, percorreu a grade de segurança para cumprimentar apoiadores.

A participação do presidente nesses atos tem sido frequente, contrariando recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) de se evitar aglomerações durante a pandemia do novo coronavírus. Sem máscara, Bolsonaro, abraçou e carregou crianças.

Entre os que acompanhavam o presidente estava o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, que na semana passada publicou protocolo liberando o uso da cloroquina para todos os pacientes de covid-19, um desejo de Bolsonaro.

HISTÓRICO DA CRISE

24 de abril

Saída de Moro

Após Bolsonaro exonerar Maurício Valeixo da direção da PF, Moro anuncia demissão do Ministério da Justiça e acusa o presidente de interferir na corporação.

27 de abril

Investigação

Decano do Supremo, ministro Celso de Mello autoriza a abertura de um inquérito para investigar as acusações de Moro.  

28 de abril

Nomeação barrada

Escolhido por Bolsonaro para chefiar a PF, delegado Alexandre Ramagem tem a nomeação barrada pelo Supremo.

2 de maio

Depoimento

À PF, Moro diz que reunião ministerial de 22 de abril e mensagens de WhatsApp comprovam interferência de Bolsonaro na PF.

8 de maio

AGU entrega vídeo

Por determinação de Celso de Mello, a Advocacia-Geral da União entre- ga a gravação do vídeo de reunião ministerial de 22 abril ao Supremo.

11 de maio

Troca na PF

Valeixo diz em depoimento que não formalizou sua demissão, embora exoneração assinada por Bolsonaro informe que saída foi “a pedido”.

22 de maio

Divulgação de vídeo de reunião

Divulgado por decisão de Celso de Mello, vídeo mostra Bolsonaro pressionando Moro. À noite, presidente reafirma que foi Valeixo que pediu para sair.

23 de maio

Mensagens

Obtidas pelo ‘Estadão’, mensagens trocadas entre Bolsonaro e Moro pouco antes da reunião ministerial de 22 de abril contradizem versão do presidente sobre saída de Valeixo. ‘Valeixo sai esta semana. Está decidido', escreveu Bolsonaro ao então ministro da Justiça.