O globo, n. 31699, 21/05/2020. Segundo caderno, p. 1

 

Regina perde papel para Mario Frias

Daniel Gullino

Gustavo Maia

Naira Trindade

21/05/2020

 

 

Ex-galã de ‘Malhação’ será o quinto secretário da Cultura do governo Bolsonaro; após fritura, atriz vai assumir Cinemateca

 Ao longo dos dois meses e meio em que foi secretária especial da Cultura, Regina Duarte oscilou entre a coadjuvante apagada e a mocinha perseguida. Isso até assumir o papel de vilã ao relativizar os crimes da ditadura militar em recente entrevista. Ontem, encerrando semanas de fritura no governo, tentou um “final feliz”. Surgiu sorridente ao lado do presidente Jair Bolsonaro, comemorando sua saída de Brasília para assumir uma Cinemateca Brasileira em estado de penúria, como O GLOBO revelou na semana passada. Acabou sendo um melancólico final para uma conturbada novela. E outra trama já está a caminho, com o ator Mario Frias, que se notabilizou como galã de “Malhação”, como protagonista.

Convidado para assumir a secretaria após se oferecer numa entrevista e fazer seguidos elogios ao presidente nas redes sociais, Frias aceitou a convocação, segundo fontes do Planalto. O ator de 48 anos, um dos poucos artistas a comparecer à posse de Regina, já era cotado desde o começo do mês, quando a fragilidade da atriz no cargo se acentuou. Ele almoçou com o presidente anteontem e ontem, e depois do encontro escreveu numa rede social: “Pra quem ainda não entendeu, vou deixar aqui o mais claro possível: aqui é Jair Bolsonaro.” Procurado, Frias não respondeu aos pedidos de entrevista. Ele será o quinto nome a comandar a Cultura em menos de um ano e meio de governo Bolsonaro. Antes de Regina, já tinham passado pela pasta Roberto Alvim, Ricardo Braga e Henrique Pires.

A CINEMATECA ‘DE PRESENTE’

O novo secretário, cuja indicação não era levada a sério pelo setor cultural até a semana passada por sua pouca expressividade no meio, ficou famoso ao surgirem“Malhação”,no fim dos anos 1990. Sua estreia na TV foi em 1996, no seriado “Caça-talentos”, estrelado por Angélica. Depois de “Malhação”, ele trabalhou em outras produções da Globo. Em “Senhora do destino” (2004), interpretou um de seus personagens de maior destaque, o deputado corrupto Thomas Jefferson. Ele fez novelas também na Bandeirantes e na Record. Atualmente apresenta o programa “A melhor viagem”, no ar desde o ano passado na Rede TV, onde também é diretor e produtor executivo, funções que vinha desempenhando desde que montou sua própria produtora.

A saída de Regina foi anunciada pelo presidente de manhã, numa postagem em suas redes sociais. “Regina Duarte relatou que sente falta de sua família,mas para que ela possa continuar contribuindo com o governo e a cultura brasileira assumirá, em alguns dias, a Cinemateca em São Paulo”, detalhou Bolsonaro. “Nos próximos dias, durante a transição, será mostrado o trabalho já realizado nos últimos 60 dias.”

A publicação é acompanhada de um vídeo em que Regina e Bolsonaro “contracenam”, tentando demonstrar que o casamento chegou a um fim de comum acordo. Na gravação, feita diante do Palácio da Alvorada pela manhã, Regina começa dizendo que foi à residência oficial perguntar ao presidente se ele a estava “fritando”. “Porque eu tô lendo isso numa imprensa em que eu não acredito mais, mas de qualquer forma queria que ele me dissesse pessoalmente: tá me fritando, presidente?”, questiona a atriz, sorrindo. “Regina, toda semana, tem um ou dois ministros que, segundo a mídia, estão sendo fritados. (...) Jamais eu ia fritar você”, responde o presidente, também rindo.

A atriz diz em seguida que acabara de ganhar um “presente”: “Um convite pra fazer Cinemateca, que é um braço da Cultura, que funciona em São Paulo, e é um museu de toda a filmografia brasileira.”

Regina foi convidada para assumir a secretaria em 17 de janeiro, horas depois de Roberto Alvim ser demitido do cargo por plagiar um discurso nazista. Após um longo “namoro”e“noivado”,comodisse, a atriz de 73 anos, que foi símbolo da TV brasileira, “contraiu matrimônio” com Jair Bolsonaro no dia 4 de março. Desde então, mesmo diante dos crescentes apelos da classe artística, sobretudo após a pandemia, que deixou muitos profissionais sem trabalho, as únicas ações articuladas por ela foram portarias que flexibilizaram as regras da Lei Rouanet para projetos atingidos pela crise da Covid-19.

Logo ao assumir, Regina enfrentou dificuldades para montar sua equipe. Foi criticada por artistas, boicotada por militantes bolsonaristas e, enfim, abandonada pelo próprio presidente que tanto a cortejou. No começo do mês, cada vez mais pressionada, radicalizou o discurso, minimizou a ditadura, defendeu o governo, rompeu com colegas de profissão. Nem assim sobreviveu no cargo.

Sua saída foi negociada pela deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), amiga da atriz. Ela continuará na pasta até que seja criado um cargo para ela na Cinemateca. Carla falou à CNN Brasil que a atriz “saiu triste” e que ganhou cargo na Cinemateca para não ficar “desamparada”, depois de perder contrato na TV Globo. O governo não disse qual será o salário da atriz. Responsável pela gestão de mais de 250 mil rolos de filmes e um milhão de documentos que contam a história do audiovisual brasileiro, a instituição abriga negativos originais de Mazzaropi, Glauber Rocha e Anselmo.

Compõem também o acervo obras raras, como os filmes “Revezes”, de 1927, do diretor Chagas Ribeiro, e “Limite”, de 1931, de Mário Peixoto, que levou décadas para ser restaurado, além de parte do acervo da extinta TV Tupi. Hoje, porém, a Cinemateca está com salários atrasados e corre o risco de ter a luz cortada, deixando todo esse acervo desprotegido, porque o governo federal não renovou contrato que mantinha com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que geria o espaço.

A REAÇÃO DOS ARTISTAS

A classe artística reagiu com descrédito à movimentação. Maitê Proença, que rompeu com Regina após a última entrevista da atriz, disse que governo tenta paralisar a cultura:

—Fica claro que a troca frenética de ministros e secretários acontece sobretudo nos setores em que o presidente deseja que nada se mexa.

Para ela, Mario Frias será “mais um fatoche”.

— Se for um bom fantoche dura, se não, cai.

Para o cantor Leoni, o presidente “busca recrutas, não técnicos”.

—Agora ficou claro que é irrelevante quem estará no cargo. Frias não tem histórico que o credencie a não ser o fato de se alinhar a Bolsonaro e Olavo de Carvalho.

Ex-marido e parceiro de set de Regina, Daniel Filho diz que a atriz foi “jogada para escanteio” ao ser realocada na Cinemateca. Já Renata Magalhães, presidente do Instituto Brasileiro de Audiovisual (IBAV), acha que é mais um episódio de descaso.

—Ela, que ignorou o audiovisual na secretaria, vai assumir uma joia como a Cinemateca. Dias piores virão —diz Renata, fazendo paródia pessimista com “Dias melhores virão”, clássico filme dirigido por seu marido, Cacá Diegues.