Correio braziliense, n. 20855 , 28/06/2020. Mundo, p.13

 

O preço da inação

Rodrigo Craveiro

28/06/2020

 

 

Falta de coordenação regional no combate à pandemia, supervalorização da economia e ausência de estratégia transformaram as Américas no novo epicentro da doença

Estados Unidos, Brasil, Peru, Chile e México. Juntos, somam mais de 4,4 milhões de infecções pelo novo coronavírus e cerca de 220 mil mortes. Depois de castigar a Europa, a pandemia espalhou-se pelas Américas, transformando o continente em novo foco de preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Como um rastilho de pólvora, a covid-19 potencializou os danos econômicos, humanos e à saúde pública, ao beneficiar-se dos erros na gestão de crise, da inação e de governos mais preocupados com a economia do que com a população. Na quinta-feira, Michael Ryan, diretor de emergências da OMS, advertiu que a pandemia “é particularmente intensa na América Central e na América do Sul”. Segundo ele, as Américas ainda não chegaram ao pico dos contágios. A Organização Panamericana de Saúde  (Opas) apontou “ampla circulação” do vírus no México e “transmissão generalizada” na América Central.

Especialistas consultados pelo Correio apontaram falhas das autoridades e falta de coordenação regional no combate à doença. Para Peter Hakim, presidente honorário do think tank Diálogo Interamericano (em Washington), os líderes norte-americano e brasileiros são culpados por não admitirem a  gravidade da pandemia. “Donald Trump e Jair Bolsonaro falharam no planejamento das defesas e das proteções necessárias. Buscaram usar a pandemia para fins políticos — fortalecer as bases de apoio. No entanto, também quiseram evitar, mesmo ao custo de muitas vidas, um desastre econômico, cientes de que ele devoraria sua autoridade e poder”, disse Hakim. O estudioso crê que a resistência instituconal às ideias e políticas dos dois chefes de Estado salvou vidas. “Mas, muito mais brasileiros e americanos morreram em consequência dos erros dos presidentes.”

Hakim explica que, além de Brasil e EUA, nações das Américas subestimaram o potencial de contágio do novo coronavírus e o grau de letalidade para idosos e portadores de doenças preexistentes. “Isso foi amplamente uma verdade em mais da metade dos países da América Latina. As autoridades também não levaram a sério as orientações dos especialistas em saúde sobre a disseminação do vírus e os suprimentos médicos necessários para tratar os pacientes”, comentou. “O pior foi o Brasil, onde o presidente ignorou o perigo representado pelo vírus, encorajou as pessoas a ignorarem as determinações de médicos e travou uma briga  com governadores, prefeitos e a Justiça. Nicarágua, México e outros países também são culpados de, praticamente, ignorarem por completo a covid-19 desde o começo.”

Cientista político da Universidade de Miami e expert em governança e saúde pública no Brasil, Michael Touchton lamenta o fato de não ter existido uma coordenação internacional entre líderes das Américas para o combate à pandemia. “A maior ‘coordenação’ deu-se entre as três nações mais populosas (EUA, Brasil e México), cujos presidentes concordaram, em primeiro lugar, que o vírus era falso; em segundo lugar, que não era tão grave; e, em terceiro, que não é responsabilidade do governo federal agir na prevenção da pandemia”, afirmou, por e-mail.

De acordo com ele, cabe aos governos nacionais de países menos favorecidos das Américas aplicar os recursos do sistema de saúde para salvar vidas, realizar campanhas de informação da opinião pública, cancelar eventos, restringir movimentos, controlar viagens, anunciar medidas fiscais e monetárias, apoiar idosos e cuidadores, e liberar investimentos emergenciais em saúde. Touchton admite que nações mais ricas podem sustentar um lockdown de modo mais eficiente e por período maior, enquanto contribuem financeiramente com seus cidadãos. “A Dinamarca, por exemplo, poderia assumir folhas de pagamento de todas as empresas durante a pandemia e estender uma generosa rede de segurança social, o que significa que cidadãos são cuidados mesmo após perderem o emprego. À exceção do Canadá, países das Américas não dispõem dessas redes ou do Estado de bem-estar social generoso”, exemplifica. Sem essa realidade, os lockdowns não podem ser mantidos por tanto tempo, e os governos enfrentam pressão considerável para reabrir muitos negócios não essenciais.

Peter Hakim esclarece que, apesar dos fracassos evitáveis de governos, outros países não tomaram medidas eficientes por falta de recursos e de capacidade sanitária. É o caso de Haiti, Honduras, Guatemala e Equador. Além do Brasil, o analista aponta El Salvador como uma nação onde se vê um “esforço para tirar vantagens da pandemia e fortalecer a autoridade política”. O presidente salvadorenho, Nayib Bukele, é acusado de rejeitar restrições impostas pela Constituição e de desconsiderar a Suprema Corte. “A América Latina fez um trabalho horrível diante da pandemia e pagará alto preço nos próximos anos”, alertou Hakim.

PONTOS DE VISTA

Por Peter Hakim

Domínio do egoísmo

“Não houve uma coordenação séria entre os países da região. Nem um único país buscou criar níveis mínimos de cooperação contra o novo coronavírus. O instinto de praticamente todas as nações das Américas era proteger-se e esquecer qualquer senso de cooperação, sem falar na solidariedade. Foi triste ver instituições regionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização Panamericana de Saúde (Opas), não fornecerem orientação ou assistência reais. Os bancos multilaterais têm sido um pouco úteis. A pior performance em relação à coordenação foi dos EUA. As políticas de deportação de Washington — real e cruelmente — aumentaram a ameaça e os danos da pandemia em vários lugares, como México, Guatemala, El Salvador e Haiti. Os Estados Unidos, uma vez mais, nem sequer foram um bom modelo para as Américas, em relação ao gerenciamento da pandemia. Isso foi os Estados Unidos em primeiro lugar, no seu pior.”

Presidente honorário do think tank Diálogo Interamericano (em Washington)

Por Michael Touchton

Líderes frágeis

“O novo coronavírus chegou às Américas bem depois do Leste da Ásia e da Europa. Isso deveria ter fornecido às lideranças regionais e aos sistemas de saúde semanas extras de preparo. No entanto, medidas políticas severamente atrasadas, uma liderança fraca e sistemas de saúde fracos e esgotados agravaram o problema. Os governos não se prepararam para testar e rastrear os contatos com pessoas expostas ao vírus. Alguns deles foram muito lentos para implementar a restrição de movimentos dentro do país. As Américas também mostram os perigos das ações adiadas por regimes populistas que desvalorizam a ciência e as evidências, colocando dezenas de milhões de pessoas em risco até que se prove que estão erradas e precisem recuar desesperadamente para implementar politicas de contenção ao vírus. Por outro lado, líderes informados pela ciência são capazes de implementar políticas de saúde para achatar a curva, bem como políticas econômicas e sociais para mitigar as consequências da contenção.”

Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Miami