Valor econômico, v.21, n.5030, 26/06/2020. Política, p. A10

 

Justiça concede foro privilegiado para investigação sobre Flávio

Francisco Góes

Alessandra Saraiva

André Guilherme Vieira

26/06/2020

 

 

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) conseguiu ontem uma vitória em mais um capítulo do processo que investiga a prática de “rachadinha” quando ainda era deputado estadual. Por dois votos a um, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio decidiu transferir o inquérito que apura suposto desvio de dinheiro público no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Estado (Alerj) para o Órgão Especial da Corte, formado por 25 desembargadores. Com a medida, o caso sai da alçada do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio, que conduzia o processo desde o início.

O senador ganha assim mais tempo para se defender e evita uma denúncia pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ) no episódio das “rachadinhas”, como é conhecida a apropriação ilegal de parte dos salários de servidores por parlamentares. A denúncia do MP-RJ era esperada que ocorresse a curto prazo caso a decisão de ontem fosse desfavorável ao senador, filho do presidente da República. Até o fechamento desta edição o senador não havia se manifestado nas redes sociais sobre o julgamento.

A vitória de Flávio Bolsonaro, porém, não foi completa. Apesar de a defesa ter conseguido um dos objetos do habeas corpus julgado ontem, que era a transferência da competência do caso para o colegiado de desembargadores, todas as decisões tomadas por Itabaiana até agora foram mantidas, inclusive a ordem de prisão de Fabrício Queiroz, apontado como operador financeiro de Flávio. Também foi mantida a ordem de prisão contra a mulher de Queiroz, Márcia, que continua foragida.

Ao todo, no curso do processo sob a condução de Itabaiana, houve quebra de sigilos fiscal e bancários de cerca de 100 pessoas que passaram pelo gabinete do deputado na Alerj por período de mais de dez anos.

O próximo embate entre a defesa do senador e o MP-RJ se dará justamente em torno da validade das medidas cautelares ordenadas por Itabaiana, que envolveram ações de busca e apreensão e quebras de sigilo dos investigados. Em nota, a advogado de Flávio Bolsonaro, Luciana Pires, afirmou: “Como o Tribunal de Justiça reconheceu a incompetência absoluta do juízo de primeira instância, a defesa agora buscará a nulidade de todas as decisões e provas relativas ao caso desde as primeiras investigações.”

A ação de impugnação da defesa se baseou no argumento de que o processo nunca devia ter sido apreciado na primeira instância uma vez que Flávio Bolsonaro era deputado estadual na época dos fatos investigados. Portanto, o juízo competente para julgar o caso seria o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio, como foi reconhecido ontem, disse a nota de Luciana Pires.

O Valor apurou que a defesa do senador analisa impetrar recurso ordinário constitucional ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para tentar obter a nulidade dos atos processuais da 1ª instância do TJ-RJ. “A questão da competência está resolvida”, disse uma fonte. O debate sobre a nulidade das provas vai se dar, portanto, no STJ. A defesa acredita que as provas são “tecnicamente” nulas. Em nota, o MP-RJ não quis comentar a decisão da 3ª Câmara Criminal, e disse que vai aguardar a publicação do acórdão para avaliar eventuais medidas a serem adotadas.

Os votos dos desembargadores foram divergentes em dois momentos ontem. A desembargadora Suimei Cavalieri, relatora do processo, votou contra o pedido da defesa. Já a desembargadora Mônica Oliveira se posicionou pela remessa do caso para a segunda instância, sendo seguida pelo desembargador Paulo Rangel. Na outra votação, sobre a nulidade dos atos da 1ª instância, Suimei Cavalieri e Mônica Oliveira votaram pela validade das decisões do juiz Flávio Itabaiana, enquanto Paulo Rangel votou pela anulação das decisões do magistrado.

Ontem circulou nas redes sociais um vídeo, originalmente postado pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), em que Rangel aparece criticando governadores e prefeitos que à época, em abril, ameaçavam prender, por “crime de covid”, pessoas que andavam na rua.

O Valor apurou que os procuradores do MP-RJ estudam apresentar recurso especial ao STJ. A questão é saber o que acontecerá com Queiroz, que está preso em Bangu. Apesar da decisão de ontem da 3ª Câmara Criminal do TJ, a investigação sobre Queiroz - ex-assessor do filho de Jair Bolsonaro e apontado como operador financeiro do senador - pode continuar na primeira instância, porque ele não tem direito a foro especial.

No final de 2018, relatório do extinto Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que foi modificado, na gestão de Jair Bolsonaro, para Unidade de Inteligência Financeira (UIF), revelou operações bancárias suspeitas de 74 servidores e ex-servidores do Legislativo do RJ, mostrando movimentação atípica de R$ 1,2 milhão na conta de Queiroz.

Desde abril de 2019, o juiz Flávio Itabaiana determinou a quebra do sigilo bancário e fiscal de Flávio, Queiroz e outras 102 pessoas e empresas, além de ordenar o cumprimento de dezenas de mandados de busca e apreensão. Na semana passada o magistrado decretou a prisão preventiva de Queiroz, preso em Bangu 8, e da mulher dele, Márcia Oliveira Aguiar, foragida há mais de uma semana.

No caso de Queiroz, a investigação, em tese, pode continuar a cargo do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc) do MP-RJ. Os sete promotores do caso estudam denunciar Queiroz pelos crimes de associação criminosa, corrupção, peculato e lavagem de dinheiro por ser o suposto operador de esquema de desvios de salários de servidores da Alerj ligados ao gabinete de Flávio enquanto ele ocupou o cargo de deputado estadual. O senador foi parlamentar estadual por quatro mandatos entre 2003 e 2018, quando foi eleito para o Senado.

Já Flávio passa à competência do Grupo de Atribuição Originária Criminal da Procuradoria-Geral de Justiça, que atua na segunda instância e é chefiado pelo procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussem. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas” (tese definida na ação penal 937, de relatoria do ministro Roberto Barroso).

Segundo o entendimento vigente, o acusado por crimes referentes ao mandato de deputado estadual já encerrado deveria ser julgado pela primeira instância. Exceto se estivesse no cargo quando o processo chegasse ao fim da instrução, situação em que a competência de foro se imporia, conforme o entendimento do STF. Mas não é o caso de Flávio Bolsonaro. A investigação que recai sobre ele ainda está em andamento.