Valor econômico, v.21, n.5030, 26/06/2020. Brasil, p. A6

 

País enfrenta 1ª onda prolongada de covid

Rodrigo Carro

Leila Souza Lima

26/06/2020

 

 

O Brasil não se desvencilhou ainda nem da primeira onda de infecções provocadas pelo novo coronavírus, o que torna virtualmente impossível prever quando e como ocorreria uma segunda onda, alertam especialistas em saúde. Num país de dimensões continentais, a doença se espalhou de forma heterogênea e, depois de castigar capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus, agora dá sinais de interiorização.

“Temos epidemias distintas no país”, afirma o sanitarista José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde. “Se você olha para o Norte, é uma coisa. No Nordeste, é outra. E, no Sudeste, outra diferente”. Na avaliação dele, Minas Gerais, parte do Centro-Oeste e o Sul passam agora por uma nova fase, com aumento de número de casos potencializado pela queda nas temperaturas.

Temporão destaca ainda o avanço da doença em direção a cidades do interior. Ontem, o Centro de Contingência do Coronavírus em São Paulo informou que o interior do Estado superou a capital em número total de mortes provocadas pela covid-19 desde o início da pandemia. “É pura especulação falar numa segunda onda da doença agora”, afirma ele, para depois argumentar que não existe certeza hoje nem sobre o grau de imunidade das pessoas já expostas ao vírus.

“Não há segunda onda ainda em lugar algum [do mundo]”, diz a pneumologista Margareth Dalcomo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “O que ocorreu foram pequenas marolas. Não podemos falar em segunda onda”, acrescenta. Isso não significa que essa possibilidade esteja descartada, ressalta ela. Margareth lembra que a pandemia de gripe espanhola no início do século XX teve uma segunda onda “extremamente mais mortífera que a primeira.”

Como exemplo da interiorização da covid-19 no Brasil, Margareth cita Manaus. “Na capital, a situação se encontra razoavelmente controlada mas o interior do Estado do Amazonas está complicado”, compara.

Diferentemente de países como China e Coreia do Sul, onde já se fala dos impactos da segunda onda epidêmica de covid-19, o que especialistas brasileiros discutem é o quão prolongada será a primeira fase no Brasil, como consequência de falhas na resposta à pandemia e de medidas insuficientes para promover a redução sustentada dos números de casos.

Para se dizer que a epidemia do novo coronavírus foi controlada, é preciso que a taxa de transmissibilidade “R” caia a níveis considerados seguros - ou seja, com transmissão por alguém que foi infectado para menos de uma pessoa, em média.

“A primeira condição é baixar o ‘R’, e a segunda é ter uma redução no número de casos de infectados de maneira sustentada”, observa Adriano Massuda, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisador visitante no Departamento de Saúde Global e Populações da Escola de Saúde Pública de Harvard. Segundo ele, esse panorama é disperso no Brasil, aspecto que dificulta definir quando, nacionalmente, o país terá superado a primeira onda da pandemia.

Na visão de Massuda o que é possível dizer nesse momento é que o país vive uma primeira onda prolongada, até se decolando das primeiras nações atingidas pela pandemia. “É esperado que se tenha uma segunda onda, isso devido às características históricas das epidemias. Se não surgir uma vacina ou um tratamento eficaz, por mais prolongada que seja a primeira fase e que se consiga algum controle da transmissão, é bastante provável haver uma segunda onda. Mas isso não está no nosso horizonte, pois ainda estamos na primeira”, pondera.

O médico sanitarista ressalta ainda que sua maior preocupação desde o início em relação à resposta do Brasil à pandemia já é algo presente. “Falo desse cenário em que não se adota ações de forma adequada para controlar a epidemia, mas ao mesmo tempo as medidas paliativas produzem impacto na atividade econômica. Então você não resolve nem uma coisa, nem outra, produzindo um impacto negativo prolongado tanto econômico quanto na saúde.”

Professor da Universidade Federal do ABC, o físico Renato Mendes Coutinho, colaborador no Observatório Covid-19 BR, considera que as medidas de distanciamento social adotadas por algumas cidades brasileiras foram eficazes apenas para conter o crescimento exponencial da contaminação, mas insuficientes para reduzir a níveis seguros. “Foram suficientes para evitar uma tragédia maior, mas ainda assim é uma tragédia. Veja, são mais de mil mortes por dia. Imaginemos algo da ordem de cinco aviões caindo diariamente. É muito grave”.

Professora titular de Demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População na Harvard T.H. Chan School of Public Health, Marcia Castro diz que a maior preocupação dos especialistas que se debruçam sobre dados e tentam fazer uma avaliação crítica dos planos de reabertura é que o país não tenha apenas uma segunda onda epidêmica, mas novas ondas da pandemia de covid-19.

“A resposta à pandemia no Brasil deve ser adaptada às desigualdades. Não se expor e trabalhar de casa não é para todo mundo. A ideia do distanciamento tem que ser adaptada às necessidades locais”, argumenta Marcia.