Correio braziliense, n. 20853 , 26/06/2020. Mundo, p.16

 

Em defesa da democracia

Rodrigo Craveiro

26/06/2020

 

 

Documento assinado por 74 organizações e cerca de 500 personalidades, entre ex-líderes políticos, laureados com o Prêmio Nobel e ativistas, adverte que governos usam pandemia do novo coronavírus como pretexto para fortalecer o poder e minar direitos fundamentais

O documento leva a assinatura de 74 organizações e de cerca de 500 personalidades — entre elas, ex-chefes de Estado e de governo, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; 11 laureados com o Prêmio Nobel da Paz e dois com o Nobel de Literatura; ativistas de direitos humanos; cientistas políticos; parlamentares e jornalistas. Sob iniciativa do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (Idea International, em Estocolmo) e intitulado A call to defend democracy (“Um chamado para defender a democracia”), o manifesto traz um alerta sobre como “certos governos” se aproveitam da pandemia do novo coronavírus para solapar os direitos individuais e a estabilidade política. “A democracia está sob ameaça, e aqueles que se importam com isso devem convocar a vontade, a disciplina e a solidariedade para defendê-la. Estão em jogo a liberdade, a saúde e a dignidade das pessoas em todos os lugares”, diz o texto.

Além de advertir que regimes autoritários usam a crise sanitária para “silenciar seus críticos” e “endurecer o controle político”, o manifesto sustenta que “alguns governos democraticamente eleitos vêm combatendo a pandemia concentrando poderes de emergência que restringem os direitos humanos e reforçando o Estado de vigilância”. Nesse contexto, afirma o documento, que não cita nominalmente os países problemáticos, parlamentos são desprezados; jornalistas, presos e perseguidos; minorias, convertidas em bodes expiatórios. O Correio entrevistou sete dos signatários.

Para um deles, Adolfo Garcé — professor do Instituto de Ciência Política da Universidad de la República em Montevidéu —, a defesa global da democracia é “demasiadamente importante para permanecer à margem”. “Não temo pela democracia em meu país, pois a pandemia tem sido brilhantemente manejada pelo governo uruguaio. No entanto, a democracia tem retrocedido no mundo. Nossa região, lamentavelmente, não é exceção. O novo coronavírus criou oportunidade para o incremento da vigilância política e da concentração de poder.”

Edmundo Jarquín, ex-deputado e ex-candidato à Presidência da Nicarágua, afirma que regimes autoritários tendem a negar a pandemia. “Vimos isso na China, ao censurar o médico que alertou sobre o novo coronavírus. Temos testemunhado tal fenômeno na Nicarágua, com a demissão de médicos, por denunciarem a falta de recomendações para proteção aos cidadãos. O documento que nós assinamos é um alerta. Ele mobilizará a opinião pública na defesa da democracia.”

Especialista em ciência política e em relações internacionais pelo Hudson Institute, em Washington, Tod Lindberg reconhece que as democracias enfrentam perigo. “No âmbito interno, indivíduos têm tomado vantagem da liberdade e dos direitos civis para subverter a liberdade e os direitos dos outros. No âmbito externo, o problema é a China, potência em ascensão determinada a persistir como Estado de partido único, que trabalhará em causa comum com outros Estados autoritários”, disse.

Claudio Lodici, coordenador da Conferência Bienal sobre o Estado da Democracia pela Universidade Loyola-Chicago (EUA), contou que assinou o manifesto por entendê-lo como “ferramenta fundamental para difundir a consciência sobre uma rachadura política”. “As pessoas, incluindo os formuladores de políticas, terão de escolher de qual lado da cerca querem ficar: o liberal ou o autoritário”, observou. “Não sabemos quais medicamentos podem combater o novo coronavírus. Mas, sabemos que tipo de governança é necessário.” Segundo Lodici, governos com alta carga de responsabilidade, transparência e confiança provam ter mais sucesso na resposta à pandemia. “Aqueles desprovidos desses fundamentos podem se afastar ainda mais dos princípios democráticos e das normas de direitos humanos.”

Entre os signatários do manifesto, estão Óscar Arias Sánchez, Frederik De Klerk, Shirin Ebadi, Leymah Gbowee, Tawakkol Karman, José Ramos-Horta  e Lech Walesa, laureados com o Nobel da Paz; a Nobel de Literatura 2015, Svetlana Alexievich; o ator Richard Gere; e o escritor francês Bernard-Henri Lévy. Além de Fernando Henrique Cardoso, os brasileiros Celso Lafer, ex-chanceler, e Bolívar Lamounier, cientista político, firmaram o documento. 

Trechos da carta

“Os regimes autoritários (...) estão usando a crise para silenciar seus críticos e endurecer o controle político.”

“Alguns governos democraticamente eleitos vêm combatendo a pandemia concentrando poderes de emergência que restringem os direitos humanos e reforçando o Estado de vigilância, sem consideração alguma pelas restrições legais, pela supervisão parlamentar ou pelos marcos temporais para a restauração da ordem constitucional.”

“Parlamentos estão sendo deixados de lado, jornalistas sendo presos e perseguidos, minorias sendo convertidas em bodes expiatórios, e os setores mais vulneráveis da população enfrentam novos e alarmantes perigos, à medida que o fechamento de emergência da economia devasta o tecido das sociedades .”

» Povo fala

Tamara Adrian, deputada opositora venezuelana pela Mesa de Unidade Democrática (MUD) e primeira parlamentar transexual  das Américas

“A sociedade civil organizada conhece bem os perigos impostos à democracia em tempos de pandemia. O documento que firmamos é uma forma de validar a luta que tem sido travada.”

Adolfo Garcé, professor do Instituto de Ciência Política da Universidad de la República, em Montevidéu (Uruguai)

“Não me atrevo a ser muito enfático sobre o resultado do manifesto. É possível que contribua para mobilizar a sociedade naqueles locais onde as liberdades políticas estão sendo atacadas no contexto da pandemia.”

Gulalai Islmail, fundadora e presidente da ONG Aware Girls, de promoção da igualdade de gênero e da paz, no Paquistão

“Precisamos nos unir e pressionar pelas liberdades cívicas, em solidariedade uns com os outros. Os governos fascistas não podem usar livremente a pandemia como desculpa para restringir nossos direitos. Um dia, a pandemia acabará e as restrições não serão revertidas.”

Edmundo Jarquín, ex-deputado e ex-candidato à Presidência da Nicarágua

“No nosso continente, os casos mais preocupantes são o Brasil e a Nicarágua. No Brasil, há resistência dos governos e das prefeituras, e a Justiça obrigou o presidente Jair Bolsonaro a usar máscara. Na Nicarágua, a falta de legitimidade da ditadura de Daniel Ortega é tamanha que o povo tem mais obedecido à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à sociedade  civil do que ao governo.”

Tod Lindberg, especialista em ciência política pelo Hudson Institute, em Washington

“Nós precisamos de uma reafirmação de princípios básicos, especialmente em tempos estressantes, como uma pandemia. Não há fundamento na Justiça para o poder de um indivíduo ou de poucos privilegiados sobre outros. Governos responsáveis perante o povo são melhores e mais receptivos ao bem comum.”

Anar Mammadli, ativista dos direitos humanos no Azerbaijão, ex-preso político e diretor do Centro de Estudos sobre Democracia e Monitoramento Eleitoral (em Baku)

“Depois do início da pandemia do novo coronavírus, em muitos países houve um aumento na restrição das liberdades políticas e de movimento. Em tais circunstâncias, considero vital erguermos a voz em proteção da democracia, durante a pandemia. A Turquia e a Rússia, por exemplo, detiveram jornalistas e líderes políticos importantes.”

Claudio Lodici, coordenador da Conferência Bienal sobre o Estado da Democracia da Universidade Loyola-Chicago (EUA)

“Governos, sociedade civil e parceiros têm uma riqueza de ferramentas à disposição para ajudar no fortalecimento da boa governança e aumentar a transparência e a responsabilização. Empresas podem se comprometer com negociações justas, exibindo, também, transparência e responsabilidade. Podemos manter os governos honestos, investir mais em saúde pública e garantir respostas à pandemia baseadas  em dados científicos, a fim de salvar vidas.”