O globo, n.31704, 26/05/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Entrevista - Nísia Trindade

Constança Tatsch

26/05/2020

 

 

No primeiro semestre de 1900, o Rio de Janeiro enfrentava um sério surto de peste bubônica, uma infecção grave transmitida por pulgas. Em 25 de maio daquele ano, na área rural da cidade, era criado o Instituto Soroterápico Federal que, nas mãos do bacteriologista Oswaldo Cruz, foi capaz de erradicar essa epidemia e a de febre amarela.

Após 120 anos, o mesmo lugar, agora Fiocruz, tem protagonismo nacional contra a maior pandemia do século 21, provocada pelo novo coronavírus.

À frente da instituição, a socióloga Nísia Trindade, a primeira presidente mulher da história da fundação, comanda uma estrutura com mais de 50 laboratórios e 12 mil trabalhadores em 20 áreas de pesquisa, referência em toda a América Latina, com a missão de que as respostas venham da ciência.

A Fiocruz surgiu há 120 anos em meio a uma epidemia. 2020 era ano de comemorações, mas veio outra pandemia.

Simbolicamente, é a afirmação de uma vocação. O Brasil construiu uma estrutura científica, tecnológica e de saúde universal. São as bases que o país pode mobilizar neste momento.

Tínhamos pensado numa grande comunicação para pensar o futuro, mas agora vivemos essa reflexão de outra forma. Fomos postos à prova, infelizmente. Gostaria muito que ficasse registrado o pesar pela perda de tantas vidas. Ao mesmo tempo, sinto que é um privilégio para a instituição poder ajudar, ser parte da resposta.

Quais iniciativas a Fiocruz tem desempenhado contra essa epidemia?

Estamos atuando em diversas frentes: vigilância, diagnóstico, sistema de dados, com informações confiáveis que permitem a elaboração de políticas públicas, e atenção aos pacientes.

Entre as realizações, a primeira é o papel dos laboratórios. A Fiocruz já tem uma tradição de desenvolver testes diagnósticos, um grande problema do Brasil. Entregaremos até setembro 11 milhões de testes para o novo coronavírus. E, numa epopeia, em pouco mais de 50 dias erguemos o centro hospitalar dedicado à Covid-19, com 195 leitos.

A pesquisa é fundamental agora e continuará a ser. Além de tratar os pacientes, contribuímos para protocolos, com estudos clínicos sobre medicamentos, pesquisas internacionais. Muitas conclusões vão se dar, infelizmente não na velocidade de transmissão do vírus.

A Fiocruz recebeu muitas doações da sociedade civil. Como avalia esse apoio?

As pessoas ficam contentes de participar. Não começamos uma campanha, foi o contrário: empresários, instituições, movimentos sociais nos procuraram, querendo fazer doações. Então criamos o site da iniciativa Unidos contra Covid (www.unidos.fiocruz.br) para organizar essa ação espontânea. Foram mobilizados R$ 89 milhões, recursos que vieram de várias formas, não só em dinheiro.

Como a senhora vê a resposta do Brasil à pandemia?

O SUS tem programas de êxito e foi acionado para responder, mas a epidemia também expõe as fragilidades, como a falta de saneamento, de moradia. E há um aspecto delicado que é a dependência tecnológica. Mesmo com os recursos do ministério, foi difícil a importação de ventiladores mecânicos e de equipamentos de proteção individual, que não tínhamos, e fármacos, porque 90% dos fármacos consumidos no Brasil são importados. Precisamos ter formas de não ser tão dependentes.

Quais expectativas para depois da pandemia?

Um mundo mais solidário é uma aposta que está aí para nós. Mas podemos voltar ao mesmo modelo de desenvolvimento que gera desigualdade, impactos ambientais negativos e esquecer o que aconteceu. Construir um pacto pela vida é fundamental, mas pode ser que tenhamos aumento de desigualdade. A pergunta não é como vai ser o mundo, mas que mundo queremos.

A tão esperada vacina pode vir do Brasil?

Seria fantástico produzir a partir de grupos nacionais, mas, junto com o Ministério da Saúde, estamos trabalhando para formar um painel de avaliação de vacinas candidatas estrangeiras e, havendo uma vacina validada por estudo clínico e de acesso para o mundo, a Fiocruz terá condições de produção. Daí a importância da resolução da OMS de que vacinas e medicamentos são bens públicos, sem lucro.