O globo, n. 31672, 24/04/2020. Especial Coronavírus, p. 14

 

Via-Crucis na Ponte da Amizade

Janaína Figueiredo

24/04/2020

 

 

Todos os dias, entre 150 e 200 paraguaios chegam à Ponte da Amizade, que une Brasil e Paraguai em Foz do Iguaçu, depois de abandonarem, em muitos casos com suas famílias, uma vida que a pandemia de Covid-19 destruiu da noite para o dia. Quase todos moravam em São Paulo e, apesar das enfáticas orientações contrárias da Organização Mundial da Saúde (OMS), passam horas e até mesmo dias aglomerados na ponte, até que conseguem sinal verde para retornar a sua terra natal, onde esperam receber ajuda de parentes e amigos. A autorização depende, informaram jornalistas paraguaios que cobrem a região, do Conselho de Defesa Nacional.

São os chamados “refugiados sanitários”, uma nova categoria que surgiu com a crise do coronavírus e, sobretudo, com o contraste entre as medidas de combate à pandemia adotadas por países vizinhos. O Paraguai, até agora com 208 contágios e oito óbitos, decretou quarentena em meados de março e, por demanda da sociedade, a medida segue vigente. As fronteiras foram fechadas e, segundo comunicou o presidente Mario Abdo Benítez,só seriam totalmente reabertas em 2021.

PROTESTOS CONTRA REFÚGIOS

O controle é tão rigoroso que afeta até os paraguaios que retornam por terra, caminhando. Eles são, de fato, os mais castigados por uma situação que mistura questões sanitárias, políticas e até mesmo condutas discriminatórias.

Hoje, nos departamentos (estados) próximos da fronteira com o Brasil, a rejeição a brasileiros e paraguaios que tenham estado no Brasil é cada vez maior, comentou a jornalista Tereza Freytes, do jornal ABC Color. Ela contou que houve manifestações e comunicados de associações civis repudiando a instalação de refúgios para os paraguaios que chegam do Brasil.

— Existe um ambiente de certa psicose,diria até mesmo pânico, em relação a pessoas que estavam no Brasil. Tiveram de enviar autoridades de Assunção para convencer os moradores a aceitarem os refúgios —relatou Tereza.

Cada um dos paraguaios que chega à Ponte da Amizade deve informar sua identidade para iniciar o trâmite de repatriação. Os dados são enviados ao Conselho de Defesa Nacional, que organiza a distribuição das pessoas em albergues transitórios, onde ficam 14 dias. De acordo com a jornalista do ABC Color, nas últimas semanas a aglomeração tornou-se dramática porque os refúgios estão lotados e só liberam a passagem de novos grupos quando surgem vagas. Se do lado paraguaio há rejeição, no brasileiro, moradores de Foz de Iguaçu se aproximam para entregar comidas e bebidas.

— Hoje (ontem) temos 170 pessoas na ponte. Quando essas pessoas entrarem no Paraguai, outras 150 ou 200 chegarão. Todos os dias acontece isso —diz Tereza.

O ministro do Interior paraguaio, Euclides Acevedo, confirmou ao GLOBO que a situação na ponte é delicada. Os paraguaios não podem entrar ao país, frisou o ministro, “até que exista espaço nos albergues”.

— Já temos 1.067 pessoas em albergues e, deste total, 15 estavam contagiadas com a Covid-19. Quando eles entram (no país), são isolados em instalações das Forças Armadas e permanecem sob rigoroso controle do Ministério da Saúde — acrescentou Acevedo.

O ministro assegurou que a maioria dos que chegam são paraguaios que moravam e trabalhavam em São Paulo.

— Por sorte, quase todos têm menos de 40 anos —destacou Acevedo, sem considerar que pela dinâmica da pandemia no continente, pessoas de todas as idades estão sendo contagiadas e falecendo.

Na ponte, mostram imagens filmadas pelos próprios paraguaios, a irritação com o governo Abdo Benítez é grande. Muitos outros compatriotas foram repatriados de avião e receberam um tratamento adequado, desde o momento em que solicitaram voltar. Os que estavam no Brasil e, principalmente, quem volta a pé, estão sendo submetidos a riscos sanitários enormes.

Famílias inteiras, crianças pequenas, mulheres que tiveram seus filhos recentemente... todos dormem amontoados no chamado “passeio da ponte”,uma estreita passarela que une os dois países. Muitos passam noites debaixo de chuva. Militares da Marinha paraguaia fornecem alimentos e permitem a utilização de banheiros químicos.

—Não importa se as pessoas estão ou não infectadas, todos ficam na aglomeração até conseguirem a autorização para entrar. Quando, finalmente, conseguem passar, depois de serem inspecionados por médicos paraguaios, são levados para albergues. Os contagiados ficam isolados —contou o jornalista Fredy Flores, que mora na região.

FRONTEIRA FICA FECHADA

Ele acompanhou de perto os protestos contra a presença dos “refugiados sanitários” vindos do Brasil e de países europeus (a minoria). Prefeitos paraguaios do departamento de Encarnación divulgaram notas repudiando “que se ponha em risco desta maneira a população que não tem casos positivos, trazendo pessoas que não são de nosso departamento”.

—A discriminação é grande. As notícias que chegam do Brasil preocupam, e as pessoas ficaram apavoradas —afirmou Flores.

O presidente Jair Bolsonaro declarou recentemente que a fronteira com o Paraguai deveria ser reaberta. Suas palavras causaram assombro em Assunção, onde autoridades do governo Benítez —no passado não muito distante um forte aliado de Bolsonaro —consideram inoportuno pensar numa reabertura da fronteira.

O Paraguai é considerado um dos países que melhor está combatendo a pandemia na região, embora seu sistema de saúde seja precário e acabe de haver uma epidemia feroz de dengue, deixando-o sem condição de enfrentar uma explosão de casos da Covid-19. Quarentena e fechamento de fronteiras eram medidas imprescindíveis para o governo de Abdo Benítez, sacrificando, até mesmo, seus próprios compatriotas.