Valor econômico, v.21, n.5007, 25/05/2020. Especial, p.A12

 

Na pandemia, Bolsonaro privilegia a economia

Raphael Di Cunto

Fabio Murakawa

25/05/2020

 

 

A agenda pública do presidente Jair Bolsonaro nos dois meses do estado de calamidade pública causado pela covid-19 mostra que o foco na retomada da economia, com as medidas de saúde públicas deixadas em segundo plano, não é mero discurso do presidente. O ministro da Economia, Paulo Guedes, esteve em 34 reuniões com o presidente no período, quase 50% a mais do que os responsáveis pelo Ministério da Saúde.

Bolsonaro tem sido criticado pela falta de uma política nacional para combater a propagação do vírus. O presidente, que já minimizou os efeitos da covid-19, defende o "isolamento vertical", apenas da população de risco, e prega a reabertura das empresas para não paralisar a economia. Após pressão pública, ele mudou o mote do governo para "preservar vidas e empregos", mas mesmo assim manteve poucas reuniões com os ministros da área e nunca chegou a apresentar um plano concreto sobre como esse isolamento funcionaria.

Luiz Henrique Mandetta (DEM), demitido por divergir de Bolsonaro sobre o isolamento social e o uso da cloroquina, foi apenas o 15º ministro na lista dos que mais participaram de reuniões com o presidente, segundo levantamento da E-Relgov, consultoria que analisou a agenda dos últimos 60 dias para direcionar o pleito das empresas no meio político. Entre 20 de março e 16 de abril, foram apenas 13 encontros - os três últimos já com a relação em crise e às vésperas da demissão.

Na época, Bolsonaro trocou os conselhos do ministro pelos do presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, contrário ao isolamento - e que, esta semana, após participar de protestos pró-governo, anunciou que está com covid-19. Ele foi recebido 18 vezes no período, mas, após ser preterido para o lugar de Mandetta, parou de frequentar o gabinete presidencial e não consta mais da agenda.

Nelson Teich, o substituto, teve quase tantas reuniões como médico do que como ministro de fato. Na véspera de assumir o cargo, ele participou de quatro encontros. Após tomar posse, segundo a agenda oficial, foram cinco reuniões seguidas - nenhuma delas privada - e um hiato de 19 dias até ser recebido novamente -, o que só ocorreu após ele descobrir, pela imprensa, que o presidente tinha assinado decreto permitindo a reabertura de academias e cabeleireiros.

No dia seguinte, o ministro encontrou-se com o presidente duas vezes em rápidas reuniões, quando ouviu cobranças para liberar o uso da cloroquina, segundo contou o próprio Bolsonaro. Eles se viram por 15 minutos na quinta-feira e uma última vez no dia seguinte, para oficializar que estava pedindo demissão. Considerando essas reuniões, ele foi recebido dez vezes em 29 dias. No mesmo período, Guedes esteve em 17 reuniões com Bolsonaro.

Responsável pela discussão dos planos para salvar as empresas e empregos, o ministro da Economia acompanhou o presidente em 34 compromissos nesses 60 dias. Foram cinco encontros privados com o presidente, videoconferências com empresários e até a polêmica "marcha" ao Supremo Tribunal Federal (STF) para expor divergências em relação às decisões da Corte sobre o isolamento social.

Procurados pelo Valor para comentar, a Secretaria de Comunicação do governo e o Ministério da Saúde não responderam. Fontes no Palácio do Planalto reconhecem que o conflito de Bolsonaro com Mandetta fez diminuírem os encontros e que o presidente passou a gestão do dia a dia da crise na saúde para o ministro da Casa Civil, Braga Netto.

Aliados de Bolsonaro afirmam que o presidente também tratou da covid-19 em encontros que não envolviam os ministros, como com o deputado Osmar Terra (MDB-RS) e a médica Nise Yamaguchi, ambos defensores do uso da cloroquina. Esses aliados reconhecem, contudo, que o presidente acompanhou mais de perto as decisões na área econômica.

Após desentendimentos com os dois médicos que ocuparam o Ministério, o presidente deixou o secretário-executivo, Eduardo Pazuello, como interino e já disse publicamente que não tem prazo para escolher um novo titular para a pasta. Pazuello é general do Exército e especialista em logística. Um dos principais atos dele foi não se opor ao protocolo sugerindo o uso da cloroquina em pacientes leves, apesar da falta de provas sobre a eficiência. O país já passou das 22 mil mortes e é o segundo com mais contaminados no mundo.

Outros ministros que participam da formulação dos planos para a economia, como o da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e o do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, também tiveram quase tantas reuniões quanto os ministros da Saúde.

A cientista política Ana Junqueira, da E-Relgov, destaca ainda que, num momento em que médicos recomendam distanciamento, Bolsonaro fez apenas 3,6% de suas reuniões por videoconferência ou telefonemas - foram 359 compromissos no período. "Chama atenção também a baixa presença do ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, nas reuniões [foram 13], comprovando seu atual desprestígio. A pasta, que deveria ganhar destaque devido à necessidade de pesquisas e aos testes com medicamentos, vem sendo deixada de lado pelo presidente", disse.

Com exceção de Guedes, os ministros mais consultados no período para a formulação das políticas do governo foram os militares. Tradicionalmente, os ministros que despacham no Palácio do Planalto - e que hoje são todos militares - são os que mais costumam frequentar o gabinete presidencial, até pela proximidade de estarem no mesmo prédio e participarem de decisões de mais de uma área.

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, contudo, despacha em outro prédio na Esplanada dos Ministérios e mesmo assim foi recebido frequentemente - foram 30 visitas em dois meses, num momento em que Bolsonaro flertou com movimentos antidemocráticos e que pediam a intervenção das Forças Armadas.

Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, responsável pela interlocução com o Congresso, esteve presente em quase uma a cada cinco agendas - foram 112 reuniões. Braga Netto participou de 77 encontros e Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência, de 72. Augusto Heleno, do Gabinete da Segurança Institucional (GSI), foi em 46 reuniões.

"Isso mostra que o núcleo duro militar segue bem próximo ao Bolsonaro e com uma certa capacidade de influenciar as ações do presidente, seja para incentivar ações ou apaziguar situações", disse Ana Junqueira, da E-Relgov.

Já o ministro Marcos Pontes foi recentemente às redes sociais para rebater os rumores de que poderia deixar o governo. Marcando o perfil do presidente na publicação, afirmou que ele e Bolsonaro continuam desde 2002 "completamente alinhados e firmes pelo Brasil".