Correio braziliense, n. 20837 , 10/06/2020. Correio Talks, p.7

 

No meio da tempestade perfeita

10/06/2020

 

 

Queda na demanda, covid-19 e risco de mudança em decisão do STF ameaçam o setor sucroenergético

Agora, no entanto, está envolto em uma tempestade perfeita. A pandemia do novo coronavírus provocou uma drástica redução no consumo de etanol e derrubou o preço da gasolina, retirando a competitividade do combustível limpo e renovável diante do derivado de petróleo. Como se isso não fosse suficiente, a cadeia da cana-de-açúcar, responsável por mais 2,3 milhões de empregos no Brasil, está diante de outro impasse, que compromete a segurança jurí- dica e os investimentos. Corre o risco de perder uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que vigora há 15 anos e já garantiu indenização a várias usinas.

Para discutir o futuro do setor, que responde por 2% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, foi realizado o Correio Talks: Covid-19 e as questões econômicas e jurídicas do setor sucroalcooleiro com as presenças do ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, da ex-ministra da Advocacia-Geral da União (AGU) Grace Mendonça, do advogado Fernando Facury Skaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), e do presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). A maior preocupação dos especialistas é sobre o impacto do julgamento em curso no STF, que trata da fórmula de cálculo para definir o valor da indenização devida pela União às usinas de álcool e açúcar em razão do tabelamento de preços dos produtos nas décadas de 1980 e 1990.

É consenso entre eles que o governo errou ao intervir e fixar preços abaixo do custo de produção das empresas e, por isso, deve pagar a conta. Contudo, apesar de a Justiça, em todas as instâncias, ter definido que houve dano e a União precisa indenizar as empresas prejudicadas, em um dos julgamentos, a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que era preciso mudar a fórmula de apurar o prejuízo para calcular a indenização. A usina em questão, a Matary, recorreu à Suprema Corte, que iniciou o julgamento este ano.

Duas classes No STF, a decisão está em 3 a 2 em favor da empresa, porém, o ministro Alexandre de Morais pediu vista e suspendeu a votação. O processo pode voltar à pauta na próxima sexta-feira. E o temor do setor sucroenergético é de que a jurisprudência adotada há 15 anos em outras ações com o mesmo teor possa ser alterada. “Isso criaria duas classes de usinas”, alerta Evandro Gussi, presidente da Unica.

“Vai gerar dois tipos de agentes econômicos atingidos da mesma maneira na mesma época, o que contraria o Estado de Direito”, ressalta.

O impasse, segundo os especialistas, cria mais uma insegurança jurídica ao setor, que foi penalizado por políticas intervencionistas do Estado em vários governos. Maílson da Nóbrega, que chefiava o Ministério da Fazenda em parte do período em que os preços do álcool e do açúcar foram tabelados, explica que, quando começaram a aparecer sinais de descontrole da inflação, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA)— autarquia da administração federal extinta no governo Fernando Collor— passou a fixar os valores dos produtos. A Fundação Getulio Vargas (FGV) foi contratada para apurar os preços.

O IAA, contudo, tabelou os preços, arbitrariamente, em 20% menos do que os apurados pela FGV. “Os valores foram fixados abaixo até mesmo do custo de produção. Em 1989, as refinarias começaram a ganhar ações. E a forma de indenizar as usinas levava em conta o conceito econômico, usado tanto pelo governo quanto pela FGV para calcular os preços. Quando ministro da Fazenda, fui aconselhado, pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a fazer um acordo formal”, conta Nóbrega.

Risco maior

A partir do recurso da AGU, que alega impacto de R$ 70 bilhões nos cofres públicos com a regra vigente, e do entendimento do STJ, a forma de indenizar as usinas deixaria de levar em conta o custo econômico para apurar o prejuízo contábil de cada uma das empresas. Ao promover essa mudança, alerta a ex-ministra da AGU Grace Mendonça, a União corre o risco de ter de pagar valores de indenização mais altos do que se for decidida a manutenção das regras vigentes.

“A jurisprudência reconhece o descompasso entre o preço tabelado e o estabelecido pela FGV, contratada pelo poder pú- blico para dar um olhar técnico ao valor. O que temos agora é a inserção da possibilidade de se ter indenização dos danos conforme o prejuízo contábil, o que não guarda nexo de causalidade com a ação do Estado”, afirma. “A União poderá correr o risco de ter que indenizar valores muito além, inclusive mergulhando em território desconhecido, no qual não se tem como aferir precisamente o tamanho da conta”, acrescenta.

Divergência sobre os valores devidos

O cálculo pelo custo econômico vem sendo feito há 15 anos, a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2005. Cerca de 60% das ações transitadas em julgado seguem o critério de indenização definido pelo Supremo e 138 precatórios foram expedidos levando em consideração as regras vigentes. Do total das usinas prejudicadas, 72% já foram beneficiadas pelas decisões, representando 88% do valor envolvido. “A AGU tem argumentado que o custo é de R$ 70 bilhões, mas o que falta pagar são R$ 8 bilhões”, explica o ex-ministro Maílson da Nóbrega. “O que está em discussão são 12% do total”, ressalta.