Correio braziliense, n. 20833 , 06/06/2020. Política, p.12

 

Papel dos militares em discussão

Jorge Vasconcellos

06/06/2020

 

 

CONSTITUIÇÃO » Enquanto apoiadores bolsonaristas citam o artigo 142 do texto constitucional para justificar uma possível intervenção das Forças Armadas, juristas e acadêmicos afirmam que a hipótese configura flagrante ilegalidade

A pregação de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em defesa de uma intervenção militar, baseada no artigo 142 da Constituição, encontra cada vez mais resistências em meio a políticos e juristas. Até o momento, tem servido de combustível para a crise política e de reforço do perfil autoritário do chefe do Executivo.

O artigo prevê que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Porém, para bolsonaristas, os militares devem exercer uma moderação em caso de crise entre os Poderes.

Esse discurso continua em voga mesmo depois que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Câmara dos Deputados emitiram pareceres afirmando que o artigo 142 não autoriza uma intervenção militar.

Bolsonaro, acuado por investigações no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), voltou a falar do artigo ontem, durante inauguração de um hospital de campanha no estado de Goiás, ao anunciar que permitirá a importação de armas de uso individual isentas de impostos. "É uma boa medida que vai ajudar todo o pessoal dos artigos 142 e 144 da nossa Constituição", disse o presidente.

O artigo 144, citado pelo presidente, também define que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis; Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militar."

Para quem acompanha o dia a dia da política, a insistência do presidente em fazer veladas ameaças de uma intervenção militar é totalmente inconstitucional. "A suposta interpretação de que compete ao presidente da República convocar as Forças Armadas para atuar como suposto poder moderador fere a lógica constitucional. A Constituição prevê a forma com que os poderes se equilibram e se controlam. Trata-se de um complexo sistema de freios e contrapesos", disse Paulo Palhares, professor de direito constitucional do Ibmec-DF.

"Ao que parece, é justamente contra esse sistema de freios e contrapesos que algumas figuras públicas evocam o artigo 142 da CF, pretendendo que as Forças Armadas privem os poderes Legislativo e Judiciário do exercício do papel Constitucional e se dobrem aos entendimentos defendidos pelo Executivo. Em suma, a atuação das Forças Armadas neste sentido encerra violação clara e inequívoca do texto Constitucional", acrescentou.

Flávia Bahia, advogada especialista em Direito Constitucional e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirmou que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica existem para assegurar o Estado Democrático de Direito, não para endossar projetos de poder. "A Constituição Cidadã é fruto de um movimento democrático que repudia há quase 32 anos qualquer forma de autoritarismo e subversão da ordem constitucional. O artigo 142 não prevê intervenção militar para resolver conflitos entre os Poderes da União. As Forças Armadas existem para assegurar o Estado Democrático de Direito, jamais para endossar projeto de poder de quem quer que seja", disse a advogada.

Para o professor Paulo Calmon, diretor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), o discurso do governo Bolsonaro é típico do populismo contemporâneo. "Porém, ao contrário da maioria dos líderes europeus e da Ásia, que voltam os olhos para o futuro, e imaginam o que será o mundo pós-covid-19, Bolsonaro prega uma volta ao passado, reifica os anos 1970 e espalha uma narrativa distorcida de que o Brasil só pode prosperar sob a tutela dos militares", disse o docente da UnB.

"Na prática, essa narrativa atende a dois objetivos: ela encanta bases eleitorais e serve como cortina de fumaça para acobertar os avanços no projeto político que une o presidente e seu grupo. As falas descabidas, as ameaças de golpe militar e as confrontações são parte da estratégia de dissuasão para desviar a atenção dos avanços importantes do projeto de poder encabeçado pelo presidente, que objetiva instaurar no país um regime político híbrido, de caráter autoritário, mas sem necessariamente ser totalitário", continuou Paulo Calmon.

"Bolsonaro tem afirmado repetidamente que não defende o totalitarismo, principalmente porque não há necessidade de um golpe militar para que ele controle o poder. O projeto político bolsonarista não propugna o fechamento do Congresso, do STF, do MP, da PF e nem da imprensa. O objetivo é mantê-los funcionando, mas controlar a atuação e tolher a autonomia. Manter uma aparência de normalidade democrática, mas concentrando o poder decisório numa pequena elite de políticos e militares, a exemplo do que ocorreu nos anos 1970", concluiu o docente.

 Frases
"A Constituição Cidadã é fruto de um movimento democrático que repudia, há quase 32 anos, qualquer forma de autoritarismo. O artigo 142 não prevê intervenção militar. As Forças Armadas existem para assegurar o Estado Democrático de Direito, jamais para endossar projeto de poder de quem quer que seja"
Flávia Bahia, advogada e professora da FGV

"O objetivo é controlar a atuação e tolher a autonomia. Manter uma aparência de normalidade democrática, mas concentrando o poder decisório numa pequena elite de políticos e militares, a exemplo do que ocorreu nos anos 1970"
Paulo Calmon, diretor do Instituto de Ciência Política da UnB

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Armas livres de impostos 

Ingrid Soares

06/06/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro afirmou, na manhã de ontem, que policiais e militares terão "brevemente" isenção de importação de armas de fogo. A fala ocorreu durante a cerimônia de inauguração do hospital de campanha de Águas Lindas de Goiás. Segundo o chefe do Executivo, policiais legislativos também serão beneficiados. "Quero dizer aos senhores que, brevemente, e isso está bastante avançado, uma boa notícia: nós vamos poder importar armas de uso individual sem imposto de importação", anunciou.

Segundo o presidente, a medida abrangerá as Forças Armadas e as entidades de segurança pública. "Uma boa medida que vai ajudar todo o pessoal dos artigos 142 e 144 da nossa Constituição. E também vamos atingir o pessoal de segurança das casas legislativas estaduais e a federal, talvez a municipal, não tenho certeza. São medidas que ajudam", concluiu.

Ao longo da semana, o presidente Jair Bolsonaro deu uma série de sinais de que pretende flexibilizar o acesso às armas de fogo no país. Na declaração mais recente, feita a um grupo de colecionadores, atiradores e caçadores (conhecidos como CACs), na saída do Palácio da Alvorada, o mandatário prometeu "novidades" e comentou que "dá para melhorar mais ainda" as políticas que tratam sobre o porte e a posse dos artefatos.

Na quinta-feira, Bolsonaro afirmou que seguirá fazendo o que puder para não depender do Parlamento, sobretudo para derrubar a Instrução Normativa 131, de autoria da Polícia Federal. Desde a saída de Sergio Moro do governo, o presidente passou a criticar o ex-ministro por nunca ter anulado os efeitos do texto, que estabelece procedimentos relativos a registro, posse, porte e comercialização de armas de fogo e munição e sobre o Sistema Nacional de Armas (Sinarm). O documento prevê, dentre outras medidas, o limite de duas armas de fogo por cidadão.

"Tinha problemas na Justiça que eu nem sabia que existia. Além da IN 131, tem mais IN's também. Mas tem novidade aí. O que mais pode ser feito pelos CACs? Porto (Alexandre de Almeida Porto, da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército) assumiu há pouco tempo. Posso dar uma ida lá para conversar com ele. O que depender de decreto, portaria, a gente resolve. Lei passa pelo Parlamento", explicou o presidente a apoiadores.

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Justiça questiona aumento de munições

Luiz Calcagno

06/06/2020

 

 

O presidente da República tem 72 horas para prestar explicações à Justiça Federal de São Paulo sobre a Portaria Interministerial número 1.634, de 22 de abril de 2020, que permitiu o aumento no número máximo de projéteis de armas de fogo por pessoa física habilitada no Brasil. Uma ação popular proposta pelo vice-líder da minoria na Câmara, deputado Ivan Valente (PSol-SP) pede a anulação do ato, que teria sido feito às pressas e, por ordem de Jair Bolsonaro, leva a assinatura de um oficial do Exército exonerado da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados da corporação. A Advocacia-Geral da União foi oficiada em 4 de junho e aguarda informações dos ministérios da Defesa e o da Justiça e Segurança Pública.

A decisão do juiz federal Djalma Moreira Gomes, da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo, foi anunciada ontem. O parecer que dá suporte à portaria foi assinado pelo general de brigada Eugênio Paccelli, que integrava a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército. Acontece que o oficial entrou para a reserva em 31 de março, e o documento foi assinado 15 dias depois. A publicação oficial saiu 22 dias após a exoneração do militar da corporação.

Ilegalidade
Ao Correio, Ivan Valente afirmou que a saída de Pacelli criou um vácuo administrativo e que Bolsonaro exigiu do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e do então ministro da Justiça, Sergio Moro, que apressassem o documento. "Isso foi muito grave. Fizemos uma ação popular em São Paulo e a Vara Federal colocou para Bolsonaro se pronunciar. O general tinha sido exonerado há mais de 20 dias. Havia um vácuo. E Bolsonaro pediu que fizessem a portaria de qualquer jeito, aumentando o número de munições. Eles saíram correndo atrás e o ato não tem legalidade. Estamos pedindo nulidade. É positivo que a Justiça tenha acionado o governo e a AGU a respeito dessa ilegalidade. Moro era contra, mas estava com a relação com Bolsonaro agravada pela intervenção da PF e não quis comprar a briga", relatou.

O texto possibilita um aumento de munição por pessoa habilitada ou agente da segurança pública de 200 por ano para 550 por mês. Pesa contra o governo, ainda, a denúncia do jornal Estado de São Paulo, que revelou a elaboração do parecer do militar em tempo recorde, em uma mensagem curta enviada por e-mail, com cerca de três linhas, segundo o periódico.

"No momento, cabe esclarecer que a Procuradoria Regional da União da 3ª Região (PRU3) — que integra a AGU — aguarda subsídios dos órgãos envolvidos para apresentar, em nome da União, a respectiva manifestação processual. Até o momento, não foi determinada pelo juiz a citação do presidente da República", informou, por e-mail, a AGU.