Valor econômico, v.21, n.5014, 03/06/2020. Política, p. A8

 

Aras aprova depoimento, mas procuradores ainda veem submissão

André Guilherme Vieira

03/06/2020

 

 

Apesar de o procurador-geral da República, Augusto Aras, ter concordado com a Polícia Federal (PF), ontem, sobre a necessidade de tomar o depoimento de Jair Bolsonaro no inquérito em que o presidente é investigado por suposta interferência no órgão policial, o chefe do Ministério Público Federal (MPF) ainda é alvo de questionamentos de seus pares, que o acusam de omissão na defesa da democracia e de subserviência ao chefe do Executivo, conforme oito integrantes do órgão ouvidos reservadamente pela reportagem.

A oitiva de Bolsonaro no inquérito, aberto após o ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, dizer que o presidente interferiu na PF, depende da decisão do relator da investigação, ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Na avaliação de fontes do MPF, falta a Aras demonstrar, com atos, compromisso com a defesa dos valores democráticos - colocados diariamente em xeque pelo presidente. A concordância do procurador-geral com a PF para ouvir Bolsonaro no inquérito é considerada parte de um movimento iniciado por Aras nos últimos dias, que inclui entrevistas, para demonstrar independência e se descolar de Bolsonaro.

Na opinião de subprocuradores ouvidos pelo Valor, enquanto a democracia é atacada por Bolsonaro e seu séquito, o chefe do MPF deveria "cerrar fileiras" com os presidentes do Supremo Tribunal Federal, da Câmara dos Deputados e do Senado na defesa do Estado Democrático de Direito.

Para Cláudio Fonteles, procurador-geral da República entre 2003 e 2005, Aras deve ter "posturas condizentes com a independência funcional que o cargo exige".

Fonteles considera que o fato de o presidente incitar manifestantes, que se aglomeram para pedir o fechamento do Congresso e do Supremo, exige providência.

"Ele faz apoio a esses grupos ostensivamente, todos os domingos, agora a cavalo, de helicóptero, que pregam a ruptura do Estado Democrático de Direito. O doutor Aras deveria colocar em inquérito também a conduta reiterada do presidente da República, à luz do artigo 23, Inciso 1º, da Lei de Segurança Nacional, que é textual em dizer, 'incitar a subversão da ordem pública"', afirma Fonteles.

"Meu Deus, se você, líder maior, participa, sorri, aplaude, faz gestos largos para pessoas que pedem o fechamento do Supremo, do Congresso e atacam pontualmente figuras representativas desses Poderes, você tem de ser investigado nesta conduta", diz Fonteles, que avalia ainda o desempenho de Aras diante das atitudes de Bolsonaro como "muitíssimo tímido".

"O Aras quer uma cadeira no Supremo Tribunal Federal", acredita o procurador regional da República aposentado e ex-integrante da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba até setembro de 2018, Carlos Fernando dos Santos Lima, em mensagem de celular enviada à reportagem. Atualmente advogando na área de compliance, Lima já declarou ter votado em Bolsonaro no segundo turno da eleição disputada com o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT). Nesta semana, o procurador aposentado assinou o manifesto "Basta", organizado por juristas críticos a Bolsonaro que defendem a democracia.

Na quinta-feira, Bolsonaro disse, durante transmissão em rede social, que Aras pode assumir uma vaga no STF. "Tem uma vaga prevista para novembro, outra para o ano que vem. O senhor Augusto Aras, nessas duas vagas, deixo bem claro, não está previsto o nome dele. Eu costumo dizer que tenho três nomes - que não vou revelar - que eu namoro para indicar para o Supremo Tribunal Federal", disse. "Se aparecer uma terceira vaga, espero que ninguém desapareça, mas o Augusto Aras entra forte para essa vaga aí", completou.

No dia seguinte, o presidente reiterou, em nova transmissão na internet, que não cogita nomear Aras antes de 2022, quando serão abertas vagas na Corte.

Na segunda-feira, Aras justificou como "unilateral" a declaração de Bolsonaro sobre nomeá-lo ao STF. "O presidente esqueceu de combinar comigo", disse ao programa "Conversa com Bial", da TV Globo. Aras retirou o foco de Bolsonaro e se colocou como vítima de um processo de "fritura", que atribuiu a eventuais interessados em chegar ao STF.

Aras também disse ao programa que, na política, "a fritura faz parte de um jogo cruel." Segundo ele, "temos de compreender essa fritura e por isso que fiz questão de dizer: estou muito satisfeito, cheguei ao ápice da minha carreira de procurador-geral da República, pretendo cumprir os dois anos que me foram concedidos (...) não faço projetos para além de dois anos".

O atual procurador-geral da República ganhou o cargo por fora da eleição de lista tríplice organizada pela Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR) desde 2001. Com exceção da primeira, apresentada a Fernando Henrique Cardoso e da última, já sob a gestão Bolsonaro, todas foram acatadas pelos presidentes.

A Constituição, no entanto, não prevê a lista tríplice. Na prática, Bolsonaro não a violou, mas quebrou uma tradição consolidada. Aras declarou-se candidato em abril de 2019, em entrevista ao jornal 'Folha de S. Paulo', ocasião em que chamou a lista tríplice de "corporativista e sindicalista" e a relacionou "aos vícios da política partidária, a exemplo do clientelismo, do fisiologismo".

Aras agora comanda uma PGR sob motim. Na semana passada, quase 600 dos 1,15 mil procuradores da República em todo o país encontraram um canal para sua insatisfação. Organizaram manifesto que pede a adoção da lista tríplice para nomeação de chefes do MPF. Foi uma resposta a manifestações recentes de Aras, como o pedido para o Supremo suspender o inquérito das "fake news" que tramita na Corte e que colocou sob alça de mira os empresários bolsonaristas Edgar Corona e Luciano Hang, além de uma peça central na engrenagem das milícias digitais, o blogueiro Allan dos Santos.

Procurada, a assessoria de imprensa da PGR enviou a mesma nota divulgada em 31 de maio em que afirma "compromisso" com o Estado Democrático de Direito e é assinada em conjunto com a presidência do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União.