Valor econômico, v.21, n.5013, 02/06/2020. Política, p. A7

 

Protestos contra arbítrio dividem frente

Maria Cristina Fernandes 

02/06/2020

 

 

A eclosão de protestos contra o governo Jair Bolsonaro no domingo desnorteou as lideranças dos manifestos que se tornaram públicos no fim de semana reunindo juristas e intelectuais. O adensamento de iniciativas contra a escalada do arbítrio não contava, neste momento, com a deflagração de manifestações de rua, uma vez que um dos crimes de responsabilidade pelos quais o presidente pode vir a ser acusado é o de desrespeitar o isolamento social. A pressão popular viria num momento posterior, quando a pandemia estivesse arrefecida, os temores da radicalização do regime afastados e um desfecho se fizesse necessário. Faltou combinar com os aliados.

Assim como em 2013, não há cálculo político envolvido na deflagração dessas manifestações. A primeira leva foi puxada pela Gaviões da Fiel, torcida organizada do Corinthians, em 9 de maio, quando George Floyd, cuja morte por policiais desencadeou os protestos americanos, ainda trabalhava como segurança num restaurante latino em Minneapolis. Os corintianos tentaram impedir uma manifestação bolsonarista na Avenida Paulista. Um terceiro protesto já está marcado para domingo sob o estigma de fantasmas.

O mais conhecido é o de sua apropriação autoritária. E como é Jair Bolsonaro o governante de plantão, o resultado pode não ser um impeachment como aquele que vitimou a ex-presidente Dilma Rousseff, vítima tardia de 2013, mas, sim, a afirmação no poder, pela força, de um presidente ainda mais radicalizado.

É bem verdade que as manifestações eclodem num movimento de distanciamento entre o presidente e o comando do Exército. No sábado, Bolsonaro encaixou, entre um passeio pelo comércio popular de Goiânia e uma ida à operação de apreensão de entorpecentes pela Polícia Rodoviária Federal, uma visita à Brigada de Operações Especiais naquela cidade. Trata-se de uma das duas brigadas do Exército que abriga tropas de mobilização imediata. A outra é a brigada paraquedista, no Rio, onde Bolsonaro serviu como capitão.

A visita, que não estava na agenda presidencial, não foi acompanhada pelo comandante do Exército, Edson Leal Pujol. Como a incursão presidencial incluía outras atividades, o general preferiu não seguir com a comitiva. É esta distância, simbolizada até aqui pelo cotovelo estendido pelo comandante ao presidente em cerimônia militar, que os protestos, sob ação de agentes infiltrados, teriam, no limite, o poder de encurtar.

Haja provocação para consegui-lo. O ex-ministro e general Carlos Alberto dos Santos Cruz, próximo de Pujol, já havia dado o recado em artigo na semana passada: as Forças Armadas optaram pela profissionalização depois do desgaste da ditadura e hoje se submetem aos ditames da Constituição. Em entrevista ao Valor, o vice-presidente Hamilton Mourão, adotou o mesmo tom.

Valeu-se de um velho ensinamento da caserna, "se te irrito, te domino", para explicar os rompantes bolsonaristas e fiou-se no marechal Castello Branco para defender a despolitização dos quartéis. Na nota acrescentada à entrevista pelos eventos do domingo, deu uma no cravo ("é preciso respeitar a liberdade de expressão, de opinião e de pensamento no país") e outra na ferradura ("sem usar a defesa da democracia para suprimir direitos ou causar instabilidade").

Se não obtém demonstrações inequívocas de apoio militar à radicalização do regime, o presidente tem cultivado as boas relações que sempre manteve com policiais militares, a quem cabe a repressão de manifestantes. Já sob o orçamento de guerra da pandemia, editou, por exemplo, medida provisória para dar aumento aos policiais militares do Distrito Federal.

Mas parece apostar mesmo é na venezuelização do país, por meio da flexibilização do porte de armas e do afrouxamento do controle sobre a munição que entra no Brasil. Numa reação à formação de milícias bolsonaristas, a partir do acirramento dos confrontos de rua, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), deu sinais de que pretende aprovar decreto legislativo sustando as iniciativas presidenciais. O único poder que, de fato, age mais aceleradamente no sentido de abreviar o mandato bolsonarista é o Supremo Tribunal Federal, que, esta semana, deve confirmar a procedência do inquérito das "fake news", com repercussões que extrapolam a Corte e terão impacto sobre as ações contra o mandato presidencial no Tribunal Superior Eleitoral.

Como a responsabilidade pela atuação das PMs, em última instância, é dos governadores, e a de São Paulo foi acusada de agir de maneira desproporcionalmente mais truculenta contra os manifestantes antibolsonaristas, o presidente já conseguiu, no mínimo, causar uma fratura na frente que se arma contra si. Até aqui bem avaliados pela reação à pandemia, os governadores do Rio e de São Paulo correm o risco de desfalcar os movimentos pró-democracia. Wilson Witzel, pelas contas a prestar à Polícia Federal, e João Doria, pela atuação da polícia militar nas manifestações.

A outra fratura, anterior aos protestos, foi provocada pela decisão de Luiz Inácio Lula da Silva, de não assinar manifestos ao lado de personalidades que, na sua opinião, colaboraram para o ocaso petista e a ascensão de Bolsonaro. À perda de liderança do ex-presidente não sobreveio o surgimento de outras capazes de fazer a interlocução entre a política tradicional e os movimentos populares.

É delas que, sob a ofensiva bolsonarista, as frentes democráticas - de rua e de gabinete - dependem para buscar um diálogo capaz de potencializar o benefício das manifestações e minimizar seus riscos para a democracia.

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Sociedade civil amplia manifestações 

Cristiane Agostine

Rafael Rosas 

02/06/2020

 

 

Movimentos populares decidiram engrossar as manifestações em defesa da democracia no próximo fim de semana, depois de protestos organizados por torcidas de clubes de futebol e coletivos de torcedores realizados no domingo em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Grupos da sociedade civil reclamam da falta de reação de partidos políticos contra o presidente da República e, por temerem um golpe de Jair Bolsonaro, resolveram sair às ruas em plena pandemia. No Rio, pelo menos uma torcida organizada já divulgou uma "marcha" que terminará no Maracanã.

No domingo, a frente Povo Sem Medo, com movimentos sociais como o MTST, participará de um ato em São Paulo, na avenida Paulista, contra o avanço do autoritarismo, junto com grupos de torcedores de diferentes times de futebol. Líder do movimento de sem-teto, Guilherme Boulos (Psol) disse que apesar do avanço da covid-19 no país, é preciso reagir nas ruas e fazer um contraponto aos apoiadores de Bolsonaro, que defendem a volta da ditadura militar, atacam o Supremo Tribunal Federal e pedem o fechamento do Congresso. "A rua não é do bolsonarismo. A maioria precisa se traduzir nas ruas, mas com cuidado", afirmou Boulos, defendendo as medidas de isolamento social.

Os movimentos populares querem atrair a periferia para as manifestações, em protesto contra as dificuldades econômicas e sociais que causadas pela pandemia. O ato que uniu na avenida Paulista, no domingo, grupos de torcedores de diferentes times de futebol e torcidas organizadas rivais como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, e terminou com repressão da Polícia Militar, teve ampla repercussão e deve fazer com que grupos da sociedade civil contrários a Bolsonaro voltem às ruas.

As manifestações que estão sendo marcadas para São Paulo e Rio de Janeiro no próximo fim de semana, e que devem ganhar adesões em outras capitais, reforçam as articulações da sociedade civil com manifestos em favor da democracia, depois de ataques de Bolsonaro às instituições.

Um dos fundadores da Gaviões da Fiel, o sociólogo e publicitário Chico Malfitani reclamou do marasmo da oposição em relação a Bolsonaro e disse que o ato das torcidas foi um estopim para novos protestos. "Foi como um fósforo num rastilho de pólvora", afirmou. "Vamos para a rua. Não vamos deixar a rua para esses caras."

"Vamos deixar como lição para a oposição que é preciso deixar de lado as picuinhas. Hoje, as forças de oposição não conseguem se entender. É preciso deixar as diferenças de lado ver que os nossos inimigos são outros", disse. Malfitani afirmou que é mais fácil unir corinthianos, palmeirenses e são-paulinos do que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-governador Ciro Gomes (PDT). "Estamos dando exemplo para os partidos políticos, para os movimentos sociais que estão num imobilismo. É preciso formar um movimento e defender a democracia. É hora de deixar de lado o que nos separa e pensar no que nos une", afirmou.

Com doze sócios da Gaviões da Fiel mortos em cerca de um mês e meio por covid-19, Malfitani disse que há um forte sentimento contra o governo da maioria da população. "A revolta está represada e uma hora vai explodir", afirmou o sociólogo, membro do conselho da Gaviões da Fiel.

Um dos organizadores do ato de domingo passado, o estudante Danilo Pássaro, líder do movimento Somos Democracia, do Corinthians, disse que o protesto é uma resposta à escalada autoritária do governo Bolsonaro. "Amadurecemos muito a ideia de ir para as ruas diante dos riscos de contaminação e da importância do distanciamento social. Mas há a ameaça de um golpe, de uma ruptura democrática", disse. "Teve repercussão ampla porque era um grito que estava preso na garganta. Teremos uma onda de protestos quando acabar a pandemia", disse Pássaro, que articula a presença de grupos de torcedores no ato do próximo domingo, na avenida Paulista.

Integrante da Democracia Corinthiana, Leandro Bergamim disse que ainda não há calendário de manifestações dos coletivos de torcedores e das torcidas organizadas, mas afirmou que em outros atos devem ser mantidas as bandeiras de respeito à democracia, às instituições, à autonomia dos Três Poderes e a resistência ao avanço do autoritarismo.

No Rio, depois de realizar um primeiro protesto pequeno na praia de Copacabana em defesa da democracia, os torcedores do Flamengo planejam novo evento, no domingo, no Maracanã. Em vídeo publicado em sua conta no Twitter, Leonardo Ribeiro, o Capitão Léo, ex-presidente da Torcida Jovem, convocou para uma caminhada a partir das 13h, saindo da Praça Saens Peña, na zona norte, até o estádio onde o objetivo é "abraçar" o Maracanã. "Domingo que vem é a vez da nossa querida Torcida Jovem, dos nossos movimentos de torcida do Rio, exterminar esses fascistas que são contra a democracia, contra o pobre, contra o negro, contra as periferias", disse Capitão Léo.

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Para Maia, população decidiu reagir 

Marcelo Ribeiro 

02/06/2020

 

 

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou ontem que o surgimento de manifestações pró-democracia representa uma decisão de setores da sociedade de não mais silenciar e, com isso, passar a reagir em relação à participação do presidente Jair Bolsonaro em atos considerados antidemocráticos. O parlamentar disse ainda que analisará os pedidos de impeachment contra o chefe do Poder Executivo "no momento adequado", sinalizando que não deixará a tarefa para seu sucessor no comando da Casa.

"Chega uma hora que o silêncio acaba representando a concordância de parte da sociedade com aqueles atos [antidemocráticos]. Então, a sociedade começa a se manifestar", disse o presidente da Câmara, em "live" promovida pelo portal UOL. "Neste momento, deveríamos estar discutindo recursos para salvar vidas e garantir a chegada de dinheiro às empresas, mas estamos discutindo manifestações", completou.

Nos bastidores, a ausência de atos contrários a Bolsonaro em plena pandemia sempre foi apontada como um dos fatores que sustentaram a indisposição de Maia em acatar um dos pedidos de impeachment contra o presidente. Agora, um dia após manifestações críticas ao autoritarismo e ao desrespeito às instituições democráticas, o presidente da Câmara indicou que analisará os pedidos de afastamento "no momento adequado". A expectativa é que ele faça essa avaliação apenas após a pandemia estar superada no país.

"O tempo é o tempo da política. Não podemos colocar lenha na fogueira. Decisão política de um impeachment precisa ser bem avaliada para não gerar mais crise política. Trato desse tema com o mesmo cuidado com que tomei as duas denúncias contra o ex-presidente [Michel] Temer. Fui independente e equilibrado. No momento adequado, vou tratar desse assunto", disse.

As manifestações de domingo também repercutiram entre os partidos. Ainda que avaliem que o surgimento dos protestos represente um movimento de insatisfação com Bolsonaro, o que poderia aumentar as chances de um processo de impeachment prosperar, parlamentares da oposição acreditam que "é preciso ter parcimônia" em relação a uma postura mais atuante nos próximos atos.

Isso porque a posição quer evitar que Bolsonaro a acuse de incoerência ao criticá-lo por desrespeitar as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e ao mesmo tempo ir às ruas para protestar contra o governo. "A ideia é deixar a bandeira do desrespeito ao isolamento social nas mãos de Bolsonaro em um momento que a pandemia se agrava no país", pontuou um líder da oposição ao Valor.

Por outro lado, bolsonaristas saíram em defesa do presidente e fizeram críticas aos confrontos entre manifestantes contrários ao governo e policiais militares.

Em rota de aproximação com Bolsonaro, partidos de Centrão evitaram comentários sobre os protestos. Nos bastidores, Bolsonaro já teria recebido o recado do bloco. As legendas estão dispostas "a esticar a corda" em defesa do presidente, mas o movimento tem um limite: não defenderão ataques às instituições democráticas.

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Eurasia descarta risco de impeachment e ruptura 

Hugo Passarelli

02/06/2020

 

 

Apesar da sobreposição de crises na saúde, economia e política, os riscos de um impeachment do presidente Jair Bolsonaro são baixos e só aumentariam caso a disseminação do novo coronavírus atinja com mais intensidade grandes centros urbanos, afirma Christopher Garman, diretor-executivo para as Américas do Eurasia Group.

"O presidente vai sair mais fraco da pandemia, as investigações vão continuar e provavelmente sua aprovação vai cair ainda mais. Mas Bolsonaro é um presidente que tem um apelo para um segmento da população", afirmou Garman hoje durante "live" da Fundação Fernando Henrique Cardoso.

Segundo ele, outro fato que deve garantir o mandato de Bolsonaro é a falta de disposição das lideranças partidárias em iniciar um processo de impeachment. "Tenho conversado com parlamentares e eles dizem que não há nenhuma intenção de tirar o presidente no meio de uma pandemia", afirmou.

O diretor da Eurasia lembra que, ao lado de Donald Trump, Bolsonaro está entre os líderes mundiais que perderam popularidade durante a crise do novo coronavírus, especialmente pela lentidão de ações e confronto com prefeitos e governadores. "A resposta inicial de Bolsonaro foi de criticar governadores e líderes de partido. Isso não está ajudando muito durante a crise de saúde, mas foi o que o elegeu em primeiro turno", afirmou, lembrando sobre a base relativamente estável do presidente.

Garman também descarta a possibilidade de os embates entre os Poderes levarem ao fim de democracia. "Embora as instituições estejam sob estresse, o maior legado institucional do governo Bolsonaro deve ser um enfraquecimento do Executivo", disse.

"O Legislativo e o Judiciário ocuparam esse espaço. Mas, obviamente, no curto prazo isso vai aumentar as tensões entre os Poderes", afirmou.

Segundo Garman, a combinação desses fatores vai aumentar a polarização entre as forças políticas no Brasil. "Mas provavelmente não o suficiente para um ambiente em que o presidente perca seu mandato ou ocorra uma ruptura da ordem democrática", afirmou.