O globo, n. 31675, 27/04/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Passaporte imunológico

Mariana Barbosa

27/04/2020

 

 

Empresas se preparam para testagem em massa

Na retomada da atividade de empresas e indústrias, muitas companhias vão incorporar à rotina de trabalho a testagem em massa dos seus funcionários. A ideia é obter uma espécie de passaporte imunológico que permita voltar às funções sem que a empresa vire um foco de contaminação do novo coronavírus.

Segundo estimativa da Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL), entidade que reúne fabricantes e importadores de testes e reagentes para diagnóstico, o setor privado está encomendando cerca de 30 milhões de kits para a examinar seus próprios colaboradores, com entrega prevista entre maio e julho.

A depender da extensão da crise, até outubro as vendas de kits para o setor privado podem igualar ou até ultrapassar a meta do Ministério da Saúde, que prevê a testagem de 46 milhões de pessoas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A estimativa se baseia em sondagens e pedidos já realizados por empresas privadas junto aos associados da CBDL.

A expansão maciça da capacidade de testagem da Covid-19, com testes a cada uma ou duas semanas para identificar quem está imunizado e pode voltar ao trabalho, é tida por especialistas como a maneira mais eficaz de permitir a retomada segura da economia, sem uma explosão de casos.

ESCASSEZ

Depois de uma fase de escassez de insumos e de kits de testes rápidos, a produção global começa a se normalizar. A expectativa é de que a partir de maio os testes comecem a chegar ao país em grandes volumes com entregas regulares.

— Como a China passou a exigir certificado de boas práticas de seus fabricantes, alguns fecharam, e quem tinha pedido ficou sem receber. Mas, agora, o mercado está se equilibrando, com novos fornecedores na Coreia do Sul, Europa, Estados Unidos e Canadá — diz Carlos Eduardo Gouvêa, presidente-executivo da CBDL.

Primeira empresa a obter registro de testes rápidos de coronavírus junto à Anvisa, a Celer está recebendo 800 mil kits da fabricante chinesa Wondof neste fim de semana. O lote já está todo vendido: vai para WEG, BR Foods, Shell, entre outras.

Cliente da Wondof há sete anos, a Celer também ajudou na importação dos 2,5 milhões de kits do mesmo fabricante e que foram doados pela Vale para o Ministério da Saúde.

— A partir do final de maio, vamos receber mais 1 milhão de kits a cada dez dias, até chegar a 8 milhões — diz Denilson Rodrigues, presidente da Celer.

Com a recomendação para a realização de testes a cada 15 dias, as empresas têm encomendado quatro kits por colaborador, para um horizonte de dois meses.

— As empresas não vão necessariamente testar todos os funcionários, mas os mais expostos e que tiveram contato com pessoas que desenvolveram a doença ou suspeita de terem contraído —diz Gouvêa, da CBDL.

Sob a consultoria de um epidemiologista, a Marfrig comprou 3 mil kits de testes rápidos e pretende adquirir mais nas próximas semanas. Além do uso próprio, a Marfrig doou R$ 7,5 milhões para a compra de 100 mil testes pelo Ministério da Saúde.

DIFICULDADES

Nem todo mundo, no entanto, está conseguindo comprar. A Via Varejo, dona das Casas Bahia, quer adquirir 15 mil kits, mas ainda está avaliando a precisão e confiabilidade deles, assim como a logística para fazer a testagem, uma vez que tem lojas espalhadas por todo o país. A XP Investimentos, que teve 40 de seus 2.500 funcionários infectados com a Covid-19, vem realizando testes nos laboratórios da Rede D’Or, mas está em busca de fornecedores para comprar de 5 mil a 10 mil kits para assegurar a reabertura dos escritórios após o fim da quarentena.

Para as empresas, não basta comprar o kit. A legislação determina a contratação de um laboratório para a aplicação e interpretação do exame. Em caso de positivo para Covid-19, é responsabilidade dos laboratórios reportar o resultado para as autoridades sanitárias.

A Cia da Consulta, rede de clínicas de especialidades médicas que faz coleta domiciliar para testagem de coronavírus, passou a oferecer o serviço a empresas. A coleta pode ser feita em casa, por drive-thru ou em um serviço ambulatorial instalado nas empresas.

Victor Fiss, fundador da Cia da Consulta, diz que nos últimos dias foi procurado por 11 grandes empresas, de diferentes setores, interessadas na contratação de 15 mil testes para funcionários. Destes,400 exames já foram realizados.

APROVAÇÃO DA ANVISA

Até agora, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recebeu pedidos de avaliação de 160 testes de diferentes fabricantes, dos quais 41 foram aprovados. A maioria é de testes rápidos ou sorológicos, realizados a partir da coleta de sangue.

As empresas têm preferido esses testes, cujo resultado sai em 15 minutos, em média. Além de mais simples e baratos —custam entre R$ 80 e R$ 100 no distribuidor, sem contar o custo do laboratório —, os exames sorológicos medem a resposta imunológica do corpo em relação ao vírus, permitindoidentificarseapessoaestáemfasederiscodetransmissãoousejáestáimunizada.Porém, para ser eficaz, a coleta tem de ser feita após o sétimo dia da contaminação, sob risco de acusar um resultado falso negativo.

Já o teste RT-PCR, feito a partir da coleta de mucosa do nariz e da garganta, é usado para detectar o próprio vírus, e seus resultados são mais confiáveis, ainda que sua execução seja mais complexa.

Diante da forte demanda corporativa, a B3B A Vida, distribuidora de produtos hospitalares que importa testes de PCR da chinesa Hybribio, entrou com pedido de certificação de um teste rápido junto à Anvisa.

— A demanda está absurda. Assim que eu obtiver o registro, pretendo importar de três milhões a quatro milhões de kits —diz Bruno Albuquerque, diretor da B3B.

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OMS é contra reabrir economia com base em testes

Leandro Prazeres

Renato Grandelle

27/05/2020

 

 

Autoridades e especialistas criticam ideia de usar triagem com exame de anticorpos para liberar circulação de trabalhadores

A estratégia de ampliar a testagem para Covid-19 com o objetivo de reabrir a economia, defendida pelo ministro da Saúde, Nelson Teich, é vista com ressalvas pela cúpula da Organização Mundial da Saúde (OMS), por autoridades de saúde pública e por epidemiologistas ouvidos pelo GLOBO.

Teich avalia que, a partir da testagem, o país poderia “sair da política de isolamento e distanciamento”.

— A gente tem que entender mais da doença. Quanto mais a gente entender, maior vai ser a nossa capacidade de administrar o momento, planejar o futuro e sair desta política do isolamento e do distanciamento. Para conhecer a doença, a gente vai ter que fazer um programa de testes —afirmou Teich.

A OMS, porém, se opôs a recomendar programas que usem “passaportes de imunidade” para liberar a circulação de trabalhadores, porque não há garantias de que uma pessoa não possa ser infectada pelo vírus da Covid-19 mais de uma vez.

O GLOBO pediu ao Ministério da Saúde o detalhamento do programa de testagem de Teich, e o órgão informou que “a estratégia de como será utilizada a testagem está sendo definida”.

Algo que já se sabe do programa é que ele será ancorado nos chamados testes rápidos (sorológicos), que detectam se a pessoa examinada já foi exposta ao novo coronavírus a partir da presença de anticorpos no sangue.

Até 18 de abril, o Ministério da Saúde havia distribuído 2 milhões desses testes, com a previsão de mais 7 milhões até o final de maio, visando testagem em massa.

Após alguns países, como o Chile, anunciarem programas de testagem em massa para identificar trabalhadores imunes, o secretário-executivo da OMS, Michael Ryan, pediu “prudência”.

— Não temos certeza de que alguém com anticorpos está totalmente protegido contra a doença —afirmou.

Ryan disse ainda que há problemas em relação à qualidade dos testes rápidos que estão sendo usados ao redor do mundo.

Para José David Urbaéz, consultor da Sociedade Brasileira de Epidemiologia, liberar a circulação de pessoas com base no teste de anticorpos seria temerário.

—O vírus é muito novo e a gente não sabe como as pessoas se comportam em relação a ele —alerta o epidemiologista.

—Não temos estudos suficientes para cravar que uma pessoa que tenha anticorpos para a Covid-19 não possa ser reinfectada.

O diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri, defende o aumento da testagem no Brasil, desde que não comprometa o isolamento social.

—Quanto mais testes realizarmos, mais conheceremos sobre a dinâmica da pandemia — explica.

— Mas precisamos lembrar que há uma proporção crítica entre o número de casos graves e a quantidade de leitos. Por isso, temos que garantir também o isolamento social.

BRASIL TEM 61.888 CASOS

O Ministério da Saúde informou ontem que o SarsCoV-2 já infectou 61.888 pessoas no Brasil, matando 4.205 delas. A letalidade — proporção de pessoas mortas em relação às que pegaram o vírus —é de 6,79%.

Há mais 1.322 mortes em investigação, ou seja, que ainda podem ser contabilizadas como tendo sido causadas pelo Sars-CoV-2. Ainda segundo a pasta, do total de casos, 30.152 são de pacientes que se recuperaram e 27.531 são de outros que estão em acompanhamento.

São Paulo segue como o estado mais afetado, com 20.715 casos e 1.700 mortes. Em seguida vem o Rio de Janeiro, com 7.111 casos e 645 óbitos.