O globo, n. 31685, 07/05/2020. Opinião, p. 2

 

Bolsonaro sofre avarias no embate com Moro

07/05/2020

 

 

Ao tomar conhecimento das dez páginas do depoimento prestado no sábado pelo ex-ministro Sergio Moro a procuradores e à Polícia Federal, o Palácio do Planalto teria comemorado, por não encontrar nenhuma revelação ameaçadora, além da essência do que o ex-juiz declarara ao sair do cargo. Pode ser uma leitura simplista do que foi relatado, sem colocar o depoimento no contexto do que está se formando em torno de um presidente irritadiço, que reage como se sentisse sob cerco.

Moro deu um roteiro para a procuradoria-geral da República investigar. É provável que Bolsonaro confie em que o procurador Augusto Aras — indicado por ele sem que constasse da lista tríplice que os procuradores costumam enviar ao presidente — arquivará o inquérito, haja o que houver. Poderes para isso Aras tem, mas sua biografia também está em jogo; os desdobramentos das crises ganham vida própria, e não se sabe o que acontecerá.

Segundo Moro, Bolsonaro não desistia de intervir na PF, na qual gostaria de ter um diretor-geral e um superintendente no Rio de Janeiro com os quais pudesse “interagir”, obter relatórios de inteligência. Tudo ilegal, pois o que a PF, uma polícia judiciária, produz está protegido por sigilo. Quanto a informações de que as autoridade se valem para tomar decisões, estas, quando colhidas pela PF, são passadas para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que por sua vez remete relatórios periódicos para a Presidência.

Mas ele insiste em tornar a PF um organismo ligado ao gabinete do presidente. Legalmente, não há como. É lógico que colocar o delegado Alexandre Ramagem, amigo dele e da família, no lugar de Maurício Valeixo seria, no entender do presidente, uma forma de driblar óbices legais. Não pôde, devido à liminar concedida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes à reclamação impetrada pelo PDT.

Assumiu o delegado Rolando de Souza, que promoveu o superintendente do Rio para seu segundo. Parecia se armar uma manobra neste posto, que preocupa tanto Bolsonaro. Porém, ele está sendo preenchido pelo delegado Tácio Muzzi, com boa imagem profissional. A ver como o presidente e família interagirão com o novo superintendente. De acordo com Moro, Bolsonaro chegou a fazer um apelo: “você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma”.

O comportamento do presidente, a saída de Moro e o que este tem falado ajudam a reconstruir o verdadeiro Jair Bolsonaro, uma obra já em andamento: político do baixo clero, autoritário, que não respeita os limites entre governo e Estado. Sua aproximação com fisiológicos dos partidos do centrão, de que ele já fez parte, dá retoques importantes nesta restauração de Bolsonaro, que, como qualquer militante da velha política, que dizia execrar, oferta cargos e verbas a Valdemar Costa Neto, Roberto Jefferson e outros para ter em troca proteção contra o impeachment. Bolsonaro trata de construir sua rede de proteção.