Valor econômico, v.21, n.5010, 28/05/2020. Política, p. A12

 

Operação da PF tem apoiadores de Bolsonaro como alvo

Isadora Peron

Murillo Camarotto

28/05/2020

 

 

Sob determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, a Polícia Federal deflagrou ontem uma operação no âmbito do inquérito das "fake news" que colocou o chamado "gabinete do ódio", uma suposta estrutura paralela de comunicação do governo, no centro do esquema investigado, além de parlamentares, empresários e aliados do presidente Jair Bolsonaro.

Os desdobramentos do caso podem trazer reflexos inclusive para as ações que pedem a cassação dos mandatos de Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). À tarde, os plenários do STF e do Tribunal de Contas da União (TCU) também analisaram casos relacionados à disseminação de "fake news" e à suspensão de serviços de aplicativos de mensagens.

"As provas colhidas e os laudos periciais apresentados nestes autos apontam para a real possibilidade de existência de uma associação criminosa, denominada nos depoimentos dos parlamentares como 'Gabinete do Ódio', dedicada a disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às Instituições, dentre elas o Supremo Tribunal Federal, com flagrante conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática", disse Moraes em seu despacho.

O ministro também apontou indícios de um grupo que financiaria o esquema. O fato de ele ter autorizado a quebra de sigilo fiscal e bancário do dono da Havan, Luciano Hang, e outros empresários bolsonaristas durante um período que engloba parte da campanha presidencial de 2018 não passou despercebido por advogados eleitorais e ministros ouvidos pelo Valor. A decisão fala em recolher dados do período de julho de 2018 a abril de 2020.

Além de Hang, também fazem parte do grupo de supostos financiadores do esquema o dono da rede Smart Fit, Edgard Corona, o humorista Reynaldo Bianchi Junior e o oficial da reserva Winston Rodrigues Lima.

Segundo Moraes, eles atuariam "de maneira velada fornecendo recursos (das mais variadas formas), para os integrantes dessa organização".

Ao todo, a PF cumpriu ontem 29 mandados de busca e apreensão contra 17 pessoas. Moraes poupou parlamentares de ter suas casas e gabinetes vasculhados, mas determinou que seis deputados federais e dois estaduais prestem depoimento. Os nomes listados pelo ministro incluem parlamentares que formam a tropa de choque do governo na Câmara, como Carla Zambelli (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF) e Filipe Barros (PSL-PR).

Entre os alvos dos pedidos de busca e apreensão, além dos quatro empresários, estão o ex-deputado e presidente nacional do PTB, Roberto Jefferson, e conhecidos apoiadores do presidente, como o blogueiro Allan dos Santos e a ativista Sara Winter.

Após a operação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu a suspensão do inquérito das "fake news". A manifestação foi enviada em uma ação que questiona a abertura do inquérito, cujo relator é o ministro Edson Fachin.

Na peça, Aras diz que a PGR foi "surpreendida" com a deflagração da operação "sem a participação, supervisão ou anuência prévia do órgão de persecução penal que é, ao fim, destinatário dos elementos de prova na fase inquisitorial, procedimento preparatório inicial, para juízo de convicção quanto a elementos suficientes a lastrear eventual denúncia".

A antecessora de Aras no comando da PGR, Raquel Dodge, já havia se manifestado contra o andamento do inquérito, que foi aberto de ofício pelo presidente do STF, Dias Toffoli. Até agora, no entanto, Aras vinha apoiando a tramitação da investigação, desde que contasse com a participação do Ministério Público. O PGR chegou a ser consultado por Moraes a respeito da operação, mas se manifestou contra as medidas.

O ministro do STF criticou o que chamou de "milícias digitais" e defendeu que quem ferir a Constituição e propagar discurso de ódio deve ser responsabilizado. As declarações foram dadas durante uma videoconferência sobre liberdade de imprensa, sem fazer menção direta à investigação.

Para ele, "as pessoas devem arcar com as consequências de seus atos". "Não é possível que novas formas de mídias se organizem para propagação de discursos racistas, de ódio, e discursos contra democracia e instituições democráticas. Não se pode prever o que as pessoas vão falar, têm ampla liberdade. Agora, uma vez que ofendam, que pretendam desconstituir o regime, instigar discursos de ódio, devem ser responsabilizados."

Em outra frente para combater a disseminação de notícias falsas, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou ontem que o Banco do Brasil suspenda qualquer veiculação de publicidade em sites acusados de espalhar "fake news".

O placar foi apertado, pois houve discussão para restringir o alcance da medida ao "Jornal da Cidade". Ao final, porém, a maioria dos ministros decidiu ratificar a medida cautelar do relator Bruno Dantas.

Na semana passada, após manifestações nas redes sociais, o Banco do Brasil disse que não anunciaria mais nesse tipo de site. Na sequência, após pressão de Carlos Bolsonaro, a instituição recuou da decisão, o que fez o Ministério Público junto ao TCU questionar a "interferência indevida" na gestão de publicidade do banco.

O plenário do Supremo, por sua vez, começou a discutir ontem também duas ações que guardam relação com o tema. Uma delas trata da suspensão dos serviços do aplicativo de conversas WhatsApp; a outra questiona a interpretação de dispositivos do Marco Civil da Internet. O julgamento será retomado hoje. Até agora, apenas a ministra Rosa Weber se manifestou.

Alguns dos alvos se manifestaram pelas redes sociais e a consideraram uma tentativa de censura. Hang afirmou que "jamais" produziu ou patrocinou "fake news". Por meio de nota, o PTB disse que Jefferson foi surpreendido e que o inquérito "acabou por se tornar instrumento de perseguição, tal como se dá em regimes de exceção".

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Presidente teria demonstrado irritação com ação

Matheus Schuch

Isadora Peron

28/05/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro reagiu ontem com irritação à operação que envolveu aliados próximos nas investigações sobre "fake news", apurou o Valor. Logo no início da manhã, Bolsonaro fez uma visita fora da agenda ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, que se recupera de uma cirurgia no hospital. À tarde, convocou a equipe ministerial para uma reunião extraordinária no Palácio do Planalto, onde discutiu os desdobramentos da ação e os procedimentos que adotará diante da convocação do ministro da Educação, Abraham Weintraub, para depor.

O motivo do pedido de esclarecimento do STF ao titular do MEC é a declaração dada por ele na reunião ministerial de 22 de abril, quando Weintraub chamou os ministros do STF de "vagabundos" e disse que, por ele, os prenderia.

Bolsonaro evitou comentar o assunto em público. Os ministros palacianos também trataram do tema apenas em conversas internas, para evitar um agravamento da crise com a cúpula do Judiciário. Após a reunião ministerial, o vice-presidente Hamilton Mourão usou as redes sociais e publicou: "Compete ao MP [Ministério Público] a ação penal pública, além de assegurar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial (acusar, investigar e denunciar). E aos demais Poderes zelar pela transparência e publicidade dos atos do Poder Público. É isso que está acontecendo no Brasil?", escreveu.

Antes, coube ao ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, principal conselheiro de Bolsonaro sobre o tema, comentar em nota a operação de forma mais detalhada, o que foi considerado, nos bastidores, a posição que o presidente gostaria de expressar. "Vivemos em um Estado Democrático de Direito. É democrático porque todo o poder emana do povo. E a este povo é garantido o inalienável direito de criticar seus representantes e instituições de quaisquer dos Poderes. Além disso, aos parlamentares é garantida a ampla imunidade por suas opiniões, palavras e votos."

O ministro justificou que, como advogado-geral da União, em 2019, defendeu a constitucionalidade do ato do Judiciário "por dever de ofício imposto pela Constituição", mas que não se manifestou sobre o mérito da investigação, jamais teve acesso ao seu conteúdo e as diligências realizadas ontem pela PF ocorreram no estrito cumprimento de ordem judicial.

Mais cedo, o ministro da Educação comparou nas redes sociais a operação ao nazismo. "Cresci escutando como os Weintraub foram caçados e como sobreviveram ao inferno de Hitler. Escutei como a SS Totenkopft entrava nas casas das famílias inimigas do nazismo. Nesse momento sombrio, digo apenas uma palavra aos irmãos que tiveram seus lares violados: LIBERDADE!", escreveu, em relação aos mandados de busca e apreensão cumpridos pela PF.

O secretário de Comunicação Social da Presidência, Fabio Wajngarten, também reagiu. "Alguns jornalistas e apoiadores tiveram seus equipamentos de trabalho apreendidos por decisão judicial e não poderão mais veicular, com liberdade de expressão, suas opiniões. Enquanto isso, alguns veículos continuam produzindo 'fake news' diariamente sem serem perturbados", escreveu.

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Congresso acelera projeto para combater 'robôs'

Vandson Lima

Renan Truffi

Marcelo Ribeiro

28/05/2020

 

 

Na esteira da operação deflagrada pela Polícia Federal por conta do chamado inquérito das "fake news", o Congresso Nacional resolveu entrar de sola no combate à propagação de desinformação e vai votar, já na semana que vem no Senado, um projeto que joga pesado para acabar com o uso de robôs em redes sociais e disparos em massa de mensagens, responsabilizando as plataformas que disponibilizam o serviço.

Denominada "Lei da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet", a medida cria uma série de regras de monitoramento que terão de ser seguidos pelas empresas, indo desde notificar todos os usuários que espalhem conteúdo desinformativo a limitar o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem cinco usuários ou grupos.

A proposta já causou reação do lado bolsonarista: ideólogo do grupo, Olavo de Carvalho foi às redes e pediu que o presidente Jair Bolsonaro, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), Augusto Heleno e as deputadas Bia Kicis (PSL-DF) e Carla Zambelli (PSL-SP) atuem contra o texto. As duas deputadas estão entre os seis parlamentares que, por determinação ministro Alexandre de Moraes, serão ouvidos pela PF no inquérito que apura produção de informações falsas e ameaças aos membros do Supremo Tribunal Federal (STF).

A seu estilo, Olavo desfilou um corolário de acusações. Chamou o senador de deputado, o Cidadania de PPS e os acusou de serem comunistas, ligados ao Foro de São Paulo e às Farc (organização de guerrilha colombiana), que por sua vez "têm monopólio do comércio de drogas no Brasil". "Esses partidos são todos cúmplices do narcotráfico, todo comunista por definição é cúmplice de genocídio e o senhor coiso [Alessandro] também é".

O PPS mudou no ano passado seu nome para Cidadania. A origem da sigla remete ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a mudança aconteceu em 1992. "Esse projeto praticamente elimina a liberdade de expressão na internet e coloca toda a circulação de informação sob total controle do governo. Vocês não tem mais coragem de dizer que são comunistas, mas são. Estão copiando o modelo chinês", opinou Olavo.

Ao Valor, Vieira disse que o vídeo causou transtornos de imediato. "Estou falando com você e recebendo dezenas de mensagens por minuto", disse. Delegado e responsável pela primeira delegacia especializada em crimes virtuais em Sergipe, o senador disse que não vai recuar. "Há figuras que são criadores de teorias conspiratórias e desinformação em massa, Olavo é um deles", apontou.

Para o parlamentar, a proposta tem grandes chances de ser aprovada. "A responsabilidade das plataformas não está bem posta do ponto de vista da legislação, sendo que só elas reúnem condições técnicas de enfrentar a disseminação de 'fake news'", aponta. "É algo que em parte já fazem, mas vinculado apenas à sua política interna e sem possibilidade de recurso. Empresas não são compelidas a fazer esse combate porque o acesso gera dinheiro, mesmo que à custa de difamação ou informação falsa. O projeto avança nisso. Construímos uma proposta palpável, exequível".

A cúpula do Congresso Nacional viu com bons olhos a operação da PF, apurou a reportagem. Segundo interlocutores, a ofensiva tem o apoio da maioria das lideranças políticas. Isso porque os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), são os congressistas que mais têm sofrido com os ataques nas redes sociais.

Na semana passada, por exemplo, Alcolumbre foi alvo de ataques antissemitas na internet. Uma postagem no Facebook, já removida da rede social, elogiava o presidente Jair Bolsonaro e afirmava que ele tinha em seu "desfavor" um judeu à frente do Senado Federal. A postagem tecia comentários preconceituosos e ofensivos aos judeus.

A operação colocou numa situação delicada até parlamentares que defendem a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar o ativismo político de integrantes do Supremo. Apesar de o inquérito ser visto como inapropriado - não seria atribuição do STF conduzir investigações -, esses parlamentares também são favoráveis a uma apuração contra bolsonaristas que promovem disseminação de notícias falsas. "É difícil equilibrar a crítica merecida ao STF sem deixar de bater nas bandalheiras investigadas", explicou uma fonte.

Durante a sessão de ontem do Senado, Alcolumbre postou mensagem nas redes defendendo o projeto. "Para combater essa avalanche de 'fake news', que agride cada cidadão brasileiro, o Senado Federal deve votar, na terça-feira, o projeto do senador Alessandro. Barrar as 'fake news' é um serviço em prol da liberdade, da boa informação e da verdade".

Maia reiterou: "Ninguém quer reduzir a liberdade de expressão. O que se quer é responsabilização. Uma plataforma digital não é apenas um instrumento de passagem. Ela sabe quando é um robô ou quando é uma pessoa que está digitalizando um número de informações, reproduzindo, retuitando", disse Maia. "A gente não pode fugir desse debate".

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Especialistas temem censura nas redes sociais 

Vandson Lima

Renan Truffi

28/05/2020

 

 

A ânsia dos senadores em aprovar, de maneira urgente, uma matéria que combata à disseminação de "fake news" por grupos bolsonaristas pode resultar em censura nas redes sociais. Esta é a avaliação de "think tanks", plataformas digitais e também organizações ligadas ao debate da comunicação na web.

A principal preocupação dos grupos que atuam nessa área é com um artigo que transfere para as plataformas (Twitter, Instagram, Facebook e etc) a responsabilidade sobre conteúdos gerados por seus usuários. Como a proposta impõe penalidades no caso de haver disseminação de desinformação, a tendência é que essas redes sociais passem a deletar ou bloquear qualquer tipo de postagem sensível.

"É positivo que tenha uma iniciativa como essa, mas fazer essa discussão de maneira açodada pode trazer mais prejuízos do que benefícios. Transferir para as plataformas a decisão sobre que tipo de conteúdo pode circular nas redes pode criar um problema muito maior. Coloca na mão de empresas privadas o direito sobre o que circula nesses espaços que se transformaram numa esfera pública de debate", defendeu Bia Barbosa, integrante da Coalizão Direitos na Rede, grupo formado por organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da internet livre e aberta no Brasil.

A mesma avaliação é feita pelo Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin), uma "think tank" que estuda a regulação de tecnologias digitais. "Sob o temor de ser responsabilizada caso se mantenha inerte, a plataforma se inclinará à decisão de censurar um conteúdo caso não tenha noção exata de sua veracidade, um cenário que afetará diretamente o exercício da liberdade de expressão no Brasil", diz uma nota técnica publicada pelo grupo.

Outra crítica ao texto é o fato de que não há regulação ou sanções contra empresas que comercializam ferramentas para falsear ou manipular o algoritmo das redes sociais. Esse tipo de ferramenta é usada para a disseminação em massa de conteúdo, justamente o que o Supremo Tribunal Federal vem investigando em relação a empresários próximos ao governo Jair Bolsonaro.

Além disso, mesmo sendo um tema complexo, o Senado não realizou qualquer audiência pública com setores que poderiam ser impactados. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), sequer escolher um relator para a proposta.