Correio braziliense, n. 20827 , 31/05/2020. Economia, p.10/11

 

Classe média encara as tarefas do lar

Marina Barbosa

31/05/2020

 

 

CORONAVÍRUS » Em meio à realidade do isolamento social, muita gente descobriu o valor do trabalho de casa ao dispensar diaristas e domésticas. A nova dinâmica provocou uma explosão nas compras on-line de eletrodomésticos. O aspirador de pó robô tornou-se o mascote da quarentena

O isolamento social mudou a relação dos brasileiros com a própria casa. Ao entrar em confinamento para tentar achatar a curva de contágio do novo coronavírus, muita gente redescobriu a cozinha e a área de serviço, assumindo o comando de tarefas que antes eram delegadas a empregadas e diaristas. A quarentena alterou uma série de percepções e hábitos de consumo. Muitos brasileiros passaram a entender o valor do trabalho doméstico. E elevaram à lista de bens essenciais itens considerados supérfluos, como o aspirador de pó.

A servidora pública Lívia Filgueiras, de 31 anos, sabe bem como é isso. Ela conta com a ajuda de uma doméstica há mais de 10 anos. Por isso, confessa que “antes da pandemia, só ia ao supermercado e fazia as besteiras do fim de semana, que nem contam na limpeza de casa”. Agora, contudo, está há quase três meses sem a ajuda da funcionária, Cláudia, e teve que assumir a arrumação do lar. “Eu a liberei desde o primeiro dia da quarentena, porque não adiantava ela ficar pegando transporte coletivo, se arriscando para vir trabalhar”, conta. Lívia admite, contudo, que as consequências práticas dessa decisão não foram tão simples. “Não era nada que eu não sabia fazer. Mas cuidar da casa, fazer comida, lavar louça, varrer, tirar o pó, lavar a roupa e administrar tudo isso com a rotina de trabalho, mesmo trabalhando de casa, foi complicado”, admite.

A mesma percepção tem a assessora parlamentar Juliana Sá, de 42 anos, que precisou assumir os cuidados da casa e do cachorro, com o marido e os dois filhos, após 12 anos. “Quando você acumula o home office, os serviços domésticos e o acompanhamento das tarefas escolares dos filhos, parece que perde o controle. As primeiras semanas foram insuportáveis por conta da sobrecarga”, reconhece, dizendo que, com o tempo, a família até conseguiu dividir melhor as tarefas domésticas, mas que, ainda assim, sente o peso dessa responsabilidade.

Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva explica que há cerca de 6,5 milhões de domésticas no Brasil. Em meio à quarentena, no entanto, a maioria deixou de ir à casa das patroas para cuidar apenas da própria residência. “11% das famílias brasileiras contavam com o apoio de uma empregada doméstica ou uma mensalista. Essas pessoas tiveram que aprender a lavar roupa, estão deixando de cozinhar só por hobby e começaram a ver que o trabalho doméstico é tão importante e cansativo quantas outras profissões”, comenta o presidente da instituição, Renato Meirelles.

De acordo com o estudo do instituto, 78% dos brasileiros que contam com o auxílio de uma diarista e 61% dos que têm uma empregada mensalista estão sem a ajuda de mais ninguém para cuidar do lar durante o isolamento social. Por isso, muitos passaram a fazer serviços que não faziam. O Locomotiva diz, por exemplo, que 49% dos brasileiros que têm uma empregada ou uma diarista não lavavam as próprias roupas e que, agora, tiveram que assumir essa função. Outros 37% começaram a cozinhar, 25%, a lavar pratos e 23%, a arrumar a casa. Não bastasse isso, 38% desse pessoal está precisando conciliar esses serviços com o home office. E é por isso que 44% dos “patrões” admitem estar muito mais cansados agora do que quando passavam o dia todo na rua.

Juliana, por exemplo, lembrou como é chato lavar banheiro e percebeu que, como nunca foi muito de cozinhar, já não sabia onde estavam algumas das vasilhas. “Tinha coisa que eu não usava há anos e tive que procurar”, conta. Já Lívia percebeu como a “simples” tarefa de varrer a casa pode ser cansativa. “Descobri que tinha um tapete, aqui em casa, que solta muito pelo. Eu não percebia porque não varria. Quando chegava em casa, estava tudo limpo. Mas, agora, até tirei o tapete da sala. Liguei para a Cláudia e brinquei ‘como você nunca me disse que era um inferno esse tapete?’”, brinca, garantindo que o tapete ficará guardado.

Eletrodomésticos

Para tentar deixar a nova rotina mais leve, também é grande o número de brasileiros que decidiu deixar a casa mais equipada na quarentena, com produtos que ampliam o conforto no lar e, sobretudo, facilitam o trabalho doméstico. Lívia, por exemplo, comprou um aspirador robô depois do sufoco com o tapete. O produto, que promete tirar todo o pó da casa com um simples comando, virou praticamente um símbolo da quarentena.

Dados da companhia de varejo GfK mostram que a busca pelos aspiradores robôs já cresceu mais de 1.000%, neste ano, no Brasil. O faturamento das vendas on-line disparou 682% nas primeiras semanas de quarentena. Em maio, quando os brasileiros vivenciaram o segundo mês de isolamento e viram que o período pode durar ainda mais, o produto bateu o recorde de 1.053% de faturamento. “É uma categoria de produto que jamais seria lembrada em qualquer ranking de compra ou necessidade, mas que se tornou um ícone da crise, porque cresceu de uma maneira impressionante depois que as pessoas perceberam que tinham problemas em limpar a casa com a vassoura e com o aspirador antigo”, ressalta o diretor da GfK, Fernando Baialuna.

Na quarentena, a GfK ainda constatou crescimentos expressivos no faturamento das vendas on-line de liquidificadores (246%), batedeiras (245%), tanquinhos (218%), processadores de alimentos (199%), lavadoras automáticas (178%) e fritadeiras (147%). Dados do Google Trends comprovam a mudança das prioridades de consumo. Segundo a empresa, as buscas por eletrodomésticos, como aspiradores e liquidificadores, cresceram cerca de 70% nas últimas semanas. “Também comprei uma (fritadeira) air fryer e foi a melhor coisa que fiz, porque facilitou muito a vida na cozinha, além de uma panela nova, uma frigideira e uma vassoura. É que, quando não é você que varre, limpa, cozinha, não se atenta tanto a essas coisas; mas, quando assume a casa, percebe o que estava faltando”, justifica Lívia, que promete ficar de olho nesses detalhes, agora, para tentar facilitar a vida de Cláudia quando ela voltar ao batente.

Baialuna admite que houve uma mudança abrupta nas preferências de consumo dos brasileiros que fazem compras pela internet. “O consumidor começou a olhar para o lar e percebeu que a quarentena seria maior do que imaginava. Por isso, percebeu que precisava equipar a casa. Na primeira fase, cresceu muito a procura por equipamentos necessários ao home office e ao entretenimento, sobretudo ao entretenimento dos filhos que estão sem ir à escola. Então, cresceu a procura por notebooks, tablets, impressoras, videogames. Mas, depois, quando perceberam que a quarentena seria ainda maior do que se imaginava, os brasileiros decidiram tornar a rotina mais prática e confortável. Por isso, começaram a procurar por equipamentos como liquidificador, mixer, batedeira e, também, ao que eu apelidei de ‘o símbolo do novo essencial’: o aspirador de pó”.

Agora que os brasileiros já passaram por várias etapas de adaptação à quarentena, a Gfk começa a perceber outra mudança no perfil das compras on-line: um aumento na procura por itens ligados aos cuidados pessoais. “Parece que começou a surgir uma certa vaidade nessa fase da quarentena. Como os brasileiros já cuidaram do home office, do entretenimento e da casa, agora está começando a crescer a busca por pranchas de cabelo, barbeadores”, observa Baialuna.

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Com mais direitos, mas em quarentena

Jailson R. Sena*

Marisa Wanzeller*

31/05/2020

 

 

CORONAVÍRUS » Empregados domésticos completam, amanhã, cinco anos de conquistas trabalhistas com a profissão regulamentada. Eles estão, porém, entre os mais prejudicados pela covid-19

Segundo dados oficiais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil é o país com mais trabalhadores domésticos em todo o mundo. Um levantamento do Instituto Locomotiva informa que 6,5 milhões de brasileiros prestam esse tipo de serviço no país. Somente em 2013, no entanto, a classe conseguiu direitos trabalhistas, por meio da PEC das Domésticas, como carga horária de trabalho e o pagamento de horas extras. Regulamentada em 1º de junho de 2015, a conquista completa 5 anos amanhã. Em meio à quarentena provocada pela pandemia do novo coronavírus, no entanto, no lugar da comemoração, só há motivos para preocupação.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) da última quinta-feira revelam uma redução de 11,8% dos postos de emprego no trabalho doméstico no primeiro trimestre de 2020. O Instituto Doméstica Legal garante que, se comparado ao mesmo período no ano anterior, as demissões ficaram na mesma margem, ao contrário das admissões, que sofreram queda de 3,33% por conta do isolamento social. Isso ocorre porque muitos empregadores teriam perdido parte da renda ou até mesmo ficado desempregados por serem pequenos empreendedores ou profissionais autônomos.

Para Mário Avelino, presidente do Doméstica Legal, “diferentemente das pessoas jurídicas, que são bem pragmáticas, os empregadores domésticos são mais emotivos, criando laços de amizade com as trabalhadoras”, por isso, evitam ao máximo a demissão. É o caso da moradora da Cidade Ocidental Maria Selma Pereira, de 37 anos, que é mensalista em uma casa há 4 anos. Mesmo com a pandemia, ela se sente amparada onde trabalha. “O trabalho continua o mesmo. O que mudaram foram as condições para ir e vir ao trabalho. A minha patroa colocou motorista e forneceu máscara e álcool em gel, para mim e para minha família”, conta. Ela afirma que o marido está desempregado e que ela está tentando manter a casa com o salário e uma ajuda da patroa.

Sobre a quarentena, Avelino explica que a medida de isolamento de parte dos trabalhadores só é possível porque os empregadores estão suspendendo contratos ou reduzindo as horas trabalhadas, de acordo com o previsto na MP 936. Grande parte, segundo ele, havia antecipado as férias no mês de abril. Para o especialista, o índice poderia ser ainda maior, entretanto “tem muito trabalhador em isolamento que está sendo bancado pelo dinheiro dos empregadores, porque eles (os patrões) não confiam (no programa do governo)” e querem garantir o empregado doméstico quando a pandemia passar.

Sob pressão

Luiza Batista Pereira, presidente da Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), afirma que muitas trabalhadoras formais e informais estão sendo demitidas, e que outras estão sendo pressionadas pelos patrões a continuarem trabalhando durante o isolamento. Contudo, com os sindicatos de portas fechadas, esses dados não estão sendo registrados. “O Sindicato de São Paulo recebeu reclamações de trabalhadoras dizendo que elas deveriam permanecer no local de trabalho e que se não quisessem ficar, seriam demitidas”, relata.

A presidente entende que as demissões são decorrentes das dificuldades que a classe média, maior empregadora dos trabalhadores domésticos, também está vivendo “as consequências da pandemia. O número elevado de demissões da classe trabalhadora, como sempre, reflete em cima das pessoas que ganham menos de três salários mínimos”. É o caso de Maria de Jesus, de 42 anos, que trabalha como diarista há 10 anos. “Fiquei 40 dias sem trabalhar, pois fui dispensada. Estavam com medo e eram do grupo de risco. A minha situação financeira ficou no zero porque minha renda era essa”, relata a moradora de São Sebastião, que tem três filhos. O marido está desempregado.

Desde o início das medidas de isolamento social, a federação luta para que os governos não incluam o trabalho doméstico nas listas de atividade essencial: “A Fenatrad entende que as trabalhadoras que cuidam de crianças, de idosos ou de pessoas com necessidades especiais, que têm patrão que trabalha em uma atividade essencial, como na área da saúde, precisam dar suporte. Mas, sem ser nessa situação, o trabalho doméstico não pode ser considerado essencial”, pontua a presidente. “Nós sabemos a importância do trabalho doméstico para a sociedade, mas entendemos que, na quarentena, ele deixa de ser um serviço essencial, porque quarentena não deve ser um privilégio, deve ser um direito de todos e todas”, conclui.

* Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro