O globo, n. 31690, 12/05/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

Estudo rastreia vírus

Ana Lucia Azevedo

12/05/2020

 

 

Covid-19 já matava no fim de janeiro no brasil

O coronavírus já causava doença e morte no Brasil no fim de janeiro, mais de um mês antes da data oficial do registro do primeiro caso, em 26 de fevereiro, em São Paulo.

A primeira pessoa a morrer de Covid-19 no país faleceu no Rio de Janeiro, na quarta semana epidemiológica, entre 19 e 25 de janeiro. E a transmissão local ou comunitária já estava em curso em São Paulo, em 4 de fevereiro, muito antes do 13 de março, data dos registros oficiais. O Ministério da Saúde divide o ano em semanas epidemiológicas, que começam num domingo e vão até o sábado. Assim, a primeira semana epidemiológica de 2020 teve início na verdade em 29 de dezembro de 2019, indo até 4 de janeiro.

Os dados sobre a transmissão prévia da Covid-19 no Brasil são de um estudo liderado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Em 26 de fevereiro, quando foi anunciado o primeiro caso, o novo coronavírus já circulava pelo país fazia um mês, destaca a pesquisa, a primeira a indicar o período do início da transmissão no Brasil.

O estudo usa como base os registros de óbitos, além de análises dos resultados de investigação de casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) por exames moleculares, disponíveis nos portais InfoGripe e MonitoraCovid-19, ambos da Fiocruz.

Os cientistas chamam a atenção para o espalhamento silencioso da Covid-19 e a necessidade de manter a vigilância molecular (testagem com PCR) para vírus respiratórios. Sem ela, seremos eternos reféns do coronavírus, alerta o coordenador da pesquisa, Gonzalo Bello, do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC/Fiocruz.

A primeira morte por Covid-19 no Brasil foi identificada por meio de exames moleculares (RT-PCR) em estudos retrospectivos, explica Bello. Só nas últimas semanas começou a ser conhecido o resultado do exame de amostras, normalmente coletadas de mortos e doentes notificados apenas como SRAG.

A data exata do óbito está nos registros do Ministério da Saúde, segundo Bello, mas o registro de uma morte pela doença durante a quarta semana epidemiológica já consta do portal MonitoraCovid-19, da Fiocruz.

— Provavelmente, esse primeiro caso do Rio foi importado. Mas outros já aconteciam em São Paulo, onde a transmissão local começou logo depois, na sexta semana epidemiológica, entre 2 e 8 de fevereiro —afirma Bello.

Isso significa que, quando o Brasil começou a monitorar o coronavírus em fronteiras e aeroportos, a partir de 13 de março, ele já estava espalhado nas ruas. Doentes estavam internados em hospitais, onde não se sabia que estavam infectados.

NO CARNAVAL, DEZ MORTES

Na sexta semana epidemiológica, de 2 a 8 de fevereiro, houve quatro casos de internação por SRAG só depois identificados como Covid-19.

Enquanto o Brasil se preparava para pular carnaval, na oitava semana, já eram 17 os brasileiros que lutavam pela vida num leito de hospital contra o novo coronavírus, além de nove mortos. Em plena folia, com blocos arrastando multidões nas ruas, houve 24 internações e dez óbitos.

Na semana de 13 de março, na qual, segundo os registros oficiais, a transmissão comunitária (local) teria começado, já eram, na verdade, 736 brasileiros internados e 209 mortos. O primeiro registro oficial de morte por Covid-19 é de 17 de março. Mas, naquela semana, de 15 a 21 de março, segundo os registros do MonitoraCovid-19, já havia 670 mortes.

Além do IOC, participaram pesquisadores da Fiocruz-Bahia, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e da Universidade da República (Udelar), no Uruguai.

O estudo foi publicado on-line e ainda sem revisão por pares na revista “Memórias do Instituto Oswaldo Cruz”.

— Os dados sobre os casos de síndrome respiratória aguda grave diagnosticados posteriormente como Covid-19 e disponíveis nos portais do Ministério da Saúde, do InfoGripe e do Monitora Covid-19 acabam por validar nossa metodologia —afirma Bello.

O coordenador da pesquisa explica que estudos na Europa e nos EUA mostram que o novo coronavírus se propagou pelo mundo bem antes do suposto. Recentemente, foram identificados um caso da doença em 27 de dezembro na França e mortes na Califórnia, nos Estados Unidos, no início de janeiro.

Para os cientistas da Fio cruz, o Sars-CoV-2 começou ase espalhar localmente em países das Américas e da Europa ao mesmo tempo, em janeiro. Porém, a velocidade de espalhamento do novo coronavírus variou em função de características de cada país, como demografia e mobilidade.

No estudo, os cientistas dizem que o Sars-CoV-2 suplantou com facilidade a vigilância global e isso mostra o quanto precisamos melhorá la. Bello destaca a necessidade de testes moleculares em tempo real, capazes de serem realizados em massa. Sem eles, o coronavírus estará sempre um passo à frente.

—Não sabemos quando essa onda terminará. Mas o vírus não irá embora logo e, provavelmente, causará outras ondas, passará a circular regularmente. Precisamos de testes moleculares em tempo real. Isso é crucial para prevenir a disseminação como essa que nos afeta agora. Só descobrimos o novo coronavírus um mês depois de ele já estar aqui —frisa Bello.

RETRATO DO PASSADO

Por falta de testes, o Brasil continua a ver apenas o passado. Somente doentes graves e mortos —e, ainda assim, uma parte deles —são testados. Como, em média, uma pessoa que morre de Covid-19 foi infectada 20 dias antes, os mortos são o retrato do passado da pandemia, que se espalha em ritmo exponencial.

O estudo observa que a frequência e a intensidade de nova sondas da doença dependem de aspectos desconhecidos da biologia do SarsCoV-2. Um dos mais importantes dele sé a duração da imunidade que os já infectados desenvolverão.

— O número de mortes de hoje é resultado de infecções de 20 dias atrás. Quantos infectados temos? Não sabemos. E precisamos de uma vigilância intensa porque há muitos aspectos sobre o coronavírus que ainda desconhecemos —destaca o cientista.

O médico Daniel Tabak, membro da comissão de especialistas( Com Ciência RJ Cov id) que assessora o governo do Estado do Rio, diz que a descoberta de que o vírus estava no Brasil muito antes do suposto mostra que os exames moleculares são os únicos que realmente podem identificar com precisão se há circulação do Sars-CoV-2.

Também evidencia agrave defasagem na testagem do país, que só com meses de atraso conseguiu analisar amostras do início do ano.

Questionado sobre o estudo, o ministro da Saúde, Nelson Teich, afirmou que ainda não tem condições de comentá-lo:

— Tem que passar por uma avaliação do grupo técnico. A Fio cru zé uma instituição totalmente confiável, se isso é um trabalho de pesquisa, tem que ser avaliado tecnicamente. Tenho que ver o trabalho, não tem como eu dar uma resposta sem nem ter lido e sem ter ouvido pessoas especialistas nisso — disse Teich, em entrevista coletiva.