O globo, n. 31649, 01/04/2020. Especial Coronavírus, p. 5

 

Motivos do recuo

Daniel Gullino

Naira Trindade

Natália Portinari

Thais Arbex

01/04/2020

 

 

Recado de outros poderes e isolamento tiveram peso

ISAC NOBREGA/AFPLeitura. Bolsonaro diante do teleprompter com o texto de seu discurso em cadeia de rádio e TV: presidente adotou tom mais comedido sobre epidemia

 A mudança de tom adotado pelo presidente Jair Bolsonaro em seu pronunciamento sobre a crise do coronavírus em cadeia nacional de rádio e TV na noite de ontem foi construída além dos gabinetes do Palácio do Planalto. Integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso fizeram chegar ao governo a avaliação de que era preciso mudar a forma como o presidente vinha apresentando suas convicções à população. O ministro da Secretaria de Governo, Jorge Oliveira, amigo há décadas do presidente, foi um dos principais emissários dos recados dos outros Poderes e atuou para ajustar o tom, bem diferente do que vinha sendo usado até ontem.

Pela primeira vez, Bolsonaro não defendeu o fim do isolamento social. Pela manhã, ainda em defesa da “volta à normalidade” preconizada desde o início da crise, o presidente tinha chegado a distorcer uma fala do presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, para dizer que ele concordava com o retorno imediato das pessoas ao trabalho.

SEM SARCASMOS

Isolado tanto no cenário nacional quanto internacional, Bolsonaro foi alertado de que precisava reassumira liderança no comando da crise eque, para isso, era necessário passar confiança, serenidade e firmeza à população. Nesse sentido, um gesto importante seri ao de acenarà pre ocupação em salvar vidas. O presidente teria reconhecido a necessidade de modular seu discurso e amane irade defender suas teses sobre o novo coronavírus.

O presidente decidiu, então, fazer um rearranjo na forma, mas sem abandonar completamente sua narrativa. Saíram os sarcasmos e os recados indiretos — inflamados pelo núcleo comandado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Entrou o tom moderado e, em certo momento, até conciliador — quando, por exemplo, agradeceu à“colaboração e a necessária união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos: Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade”.

O reconhecimento da gravidade da crise veio no início:

— O Brasil avançou muito nesses 15 meses, mas agora estamos diante do maior desafio da nossa geração.

Outra mudança foi em relação às vítimas: se antes Bolsonaro havia dito que era preciso ter “paciência” com as mortes e que “essa é a realidade”, agora afirmou que é preciso evitar “o máximo qualquer perda de vida humana”.

Bolsonaro também foi mais cauteloso ao falar da hidroxicloroquina, substância que têm sido testada contra a Covid-19: apesar de dizer que ela parece“bastante eficaz ”, ressaltou que não tem“eficiência cientificada comprovada”.

Bolsonaro citou novamente o discurso do diretor-geral da OMS, mas em um tom mais brando. De manhã, ele disse que Tedros havia defendido o retorno o trabalho. Entretanto, a OMS e o próprio diretor-geral vieram à público para reafirmara importância do isolamento social e cobrar políticas sociais de proteção econômica aos que não podem trabalhar neste período.

No pronunciamento, o presidente voltou a citar trechos da fala de Tedros que defendem a atenção aos mais pobres, mas disse que não fazia isso para criticar medidas de prevenção.

— Não me valho dessas palavras par anegara importância das medidas de prevenção e contro leda pandemia, mas para mostrar que da mesma forma precisamos pensar nas mais vulneráveis. Esta tem sido a minha preocupação desde o princípio.

O presidente tambémrepetiu diversas vezes que é pre ciso combater tanto o vírus quanto o desemprego, e disse que orientou os ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Paulo Guedes (Economia) a tomar medidas nesse sentido.

—Temos uma missão: salvar vidas sem deixar para trás os empregos.

Este foi o quarto pronunciamento sobre o coronavírus realizado em um período de menos de um mês. No primeiro, em 6 de março, afirmou que não havia motivo para “pânico”. No dia 12, recomendou o adiamento de manifestações, mas acabou depois ele próprio participando. No terceiro, na semana passada, pediu a reabertura do comércio e das escolas e o fim do “confinamento em massa”.

BARROSO VETA CAMPANHA

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu que o governo federal contrate qualquer campanha contra medidas de isolamento durante a pandemia do coronavírus. Segundo o ministro, a campanha do governo federal “O Brasil não pode parar”, que chegou a circular nas redes sociais, desinforma e coloca em risco a população.

“Em momento em que diversas entidades médicas se manifestam pela necessidade de distanciamento social, uma propaganda incita a população ao inverso. Trata-se de uma campanha ‘desinformativa’: se o Poder Público chama os cidadãos da “Pátria Amada” a voltar ao trabalho, a medida sinaliza que não há ameaça para a saúde da população e leva cada cidadão a tomar decisões firmadas em bases inverídicas acerca das suas reais condições de segurança e de saúde”, escreveu Barroso.