Correio braziliense, n. 20812 , 16/05/2020. Política, p.4

 

Governadores fazem críticas contundentes

Alessandra Azevedo

16/05/2020

 

 

Gestores estaduais reprovam a dança das cadeiras no Ministério da Saúde e reforçam que instabilidades no governo os impulsionam a manter as rédeas do enfrentamento ao vírus

A saída de Nelson Teich do Ministério da Saúde, anunciada ontem, rendeu mais um capítulo da briga entre os governadores e o presidente Jair Bolsonaro, intensificada durante a crise do novo coronavírus. Chefes de Executivos de vários estados lamentaram a dança das cadeiras em uma das pastas mais importantes do país, no meio de uma pandemia que já resultou na morte de quase 15 mil brasileiros.

As queixas não são, necessariamente, pelo nome perdido, mas pelo motivo: divergências com Bolsonaro. O ex-ministro demonstrou "compromisso com a ciência e respeito ao isolamento", afirmou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ontem, em discurso no Palácio dos Bandeirantes. Teich, assim como o antecessor, Luiz Henrique Mandetta (DEM), discorda do presidente quanto a medidas de isolamento social e uso de medicamentos como a cloroquina para tratar pacientes. As duas trocas em um mês, na visão de Doria, são resultado da "desordenação do governo Bolsonaro".

O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), também criticou. "Ninguém vai conseguir fazer um trabalho sério com sua interferência nos ministérios e na Polícia Federal", escreveu no Twitter. Ele acredita que "é por isso que governadores e prefeitos precisam conduzir a crise da pandemia, e não o senhor, presidente".

Outros governadores, de todos os espectros políticos, publicaram declarações no mesmo sentido. O gestor da Bahia, Rui Costa (PT), disse ser "inaceitável" a demissão de dois ministros, em plena pandemia, "por não aceitarem seguir as orientações médicas de um presidente que nada entende de Saúde".

Para o governador do Amapá, Waldez Góes (PDT), a situação "aumenta ainda mais a insegurança quanto ao enfrentamento da pandemia". A mudança no ministério foi anunciada no mesmo dia em que ele decretou lockdown em todo o estado, a partir da próxima terça-feira. "Cada vez mais, recai sobre governadores e prefeitos a responsabilidade de tomar medidas para achatar a curva da covid-19. Esse trabalho, que tem sido fundamental para evitar uma tragédia ainda maior, é questionado exatamente pelo presidente, que foge da responsabilidade de unir e conduzir o país num momento tão crítico", tuitou.

Bolsonaro tem duas opções, na visão do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB): "Ou deixa o ministério agir, segundo as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), ou vamos perder cada vez mais brasileiros", escreveu.

 Frase
"Cada vez mais, recai sobre governadores e prefeitos a responsabilidade de tomar medidas para achatar a curva da covid-19"
Waldez Góes, governador do Amapá

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Parlamentares repudiam interferência

Luiz Calcagno

16/05/2020

 

 

A saída do ministro da Saúde, Nelson Teich, repercutiu mal no Congresso. O desembarque do médico oncologista após 28 dias no cargo gerou ansiedade sobre quem o presidente Jair Bolsonaro escolherá para substituí-lo e os efeitos de trocas na pasta.

O líder do Podemos na Câmara, Léo Moraes (RO), destacou que a troca ocorre quando os números de infecção e morte apontam crescimento. "É preocupante para o país que tenhamos, mais uma vez, mudança no comando do Ministério da Saúde, mudanças de política e de protocolos de trabalho, que precisam de tempo para apresentar resultados. E esse tempo, infelizmente, o Brasil não tem mais", disse.

Para o líder do PSB, deputado Alessandro Molon (RJ), é hora de dar curso aos pedidos de impeachment protocolados contra Bolsonaro. "O presidente da República não quer um ministro técnico, mas alguém que concorde com as suas insanidades ideológicas, em insistir na irresponsabilidade da cloroquina e na reabertura do comércio e fim do distanciamento social", reprovou.

No Senado, o vice-líder do Cidadania, Alessandro Vieira (SE), demonstrou preocupação semelhante. "O grande sinal é de que Jair Bolsonaro está procurando um médico fanático, um charlatão disposto a endossar protocolos não aceitos pela ciência, ou um cumpridor de ordens, que pode ser um militar fardado ou integrante do Centrão", frisou.

Líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO) e o também emedebista Hildo Rocha (MA) saíram em defesa de Bolsonaro. "Eu vejo como uma troca de ministros que é prerrogativa do presidente. E a decisão do ministro tem de ser respeitada. Ele não quis continuar no cargo. É uma troca importante em um momento decisivo, mas que temos que encarar com espírito de solução. É partir para cima e resolver", argumentou Gomes. "Se a pessoa que ele botou não está dando conta, tem de tirar. Ele está tendo coragem, pois é um momento de muita incerteza e intranquilidade, é algo muito arriscado perante o pensamento da população", opinou Rocha.

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A preocupação de especialistas

Bruna Lima

Maíra Nunes

Maria Eduarda Cardim

Renata Rios

16/05/2020

 

 

A saída de mais um titular do Ministério da Saúde complica ainda mais a situação do Brasil no enfrentamento à covid-19. Especialistas da área demonstram apreensão com a falta de uma linha de combate clara e coordenada no governo federal. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) manifestou a "mais alta preocupação" com a instabilidade na pasta e com a condução da pandemia no Brasil. "Estamos diante da maior calamidade na saúde pública, com o maior número de mortos de nossa história recente. Não é o momento de jogar mais dúvidas neste cenário, que tem infligido tanta dor, sofrimento e morte aos brasileiros", disse Alberto Beltrame, presidente do Conass.

Ele cobrou ações coordenadas e claras. "Estabilidade, unidade técnica, esforços conjuntos, ações efetivas e compromisso com a vida e com saúde da população é o que se espera dos gestores neste momento. Em todas as esferas de governo."

Já a presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, Heloísa Ravagnani, criticou a falta de "uma linha específica de protocolo". Os dois últimos ministros da Saúde — Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta — vinham seguindo a linha semelhante: isolamento social e restrição ao uso da cloroquina. "Seria bom manter essa posição. A medicina deve ser feita baseada em evidências, porque a gente não deve fazer mais mal ao paciente do que a própria doença", argumentou Ravagnani, referindo-se ao futuro ocupante do cargo.

Questionado sobre a saída de Teich, o diretor-executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), Mike Ryan, evitou fazer comentários políticos, mas disse estar ciente da alta no número de novos casos no país. "É crucial que haja coerência e coesão na abordagem da sociedade e do governo, especialmente em grandes federações, onde as comunidades precisam ouvir uma mensagem consistente das lideranças em todos os níveis", respondeu, durante coletiva de imprensa, em Genebra, na Suíça.