Valor econômico, v.21, n.4997, 11/05/2020. Política, p. A8

 

Estados têm epidemia de projetos sobre 'fakenews' da covid-19

Malu Delgado

11/05/2020

 

 

A pandemia de covid-19 tem provocado um fenômeno político nas Assembleias Legislativas do país: a tramitação de uma avalanche de projetos de lei com previsão de punições para casos de divulgação ou compartilhamento de "fakenews" sobre a doença ou qualquer outro tipo de epidemia e endemia. Levantamento feito pelo Instituto de Liberdade Digital, em São Paulo, revela que 23 projetos de lei estaduais foram apresentados para coibir a divulgação de notícias falsas, sendo que 18 deles tratam especificamente de covid-19, e outros cinco abordam "fakenews" em geral. Desse total, apenas dois foram apresentados antes da onda de disseminação do novo coronavírus neste ano.

A maioria das matérias começou a tramitar em março e abril. Já foram aprovados e viraram lei projetos estaduais no Pará, Paraíba, Ceará e Distrito Federal. Na última sexta-feira, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), vetou integralmente um projeto aprovado pela Assembleia, explicando haver vício de inconstitucionalidade.

"É uma epidemia de projetos de lei", alerta Beatriz Moraes, uma das pesquisadoras do instituto, advogada especializada em direito digital e internacional. Segundo ela, praticamente todos os projetos tramitam em regime de urgência nos Legislativos estaduais. Para Diogo Rais, diretor-geral do Instituto de Liberdade Digital, qualquer tipo de legislação que envolve internet e liberdades civis pressupõe um amplo debate popular, como ocorreu com o Marco Civil da Internet. "Agora estamos vendo situações que afrontam o marco civil na calada da covid", diz Rais. A pesquisa faz parte de um projeto recente do instituto, "Na calada da covid - enquanto todo mundo está de olho na pandemia, tem gente de olho na liberdade digital".

Todos os projetos propõem multas para quem publicar ou compartilhar notícias falsas ou "sabidamente falsas" sobre a pandemia. Os valores da multa variam de valores simbólicos, como R$ 21,28, nos casos das proposições da Bahia, Rondônia e Distrito Federal, podendo chegar a cifras salgadas, como R$ 30.316,00 no Mato Grosso. De acordo com Beatriz Moraes, pelo menos 11 projetos possuem parágrafos idênticos e genéricos, sem definir qual é o conceito de "fakenews" e a quem cabe fazer essa avaliação. Outro problema, segundo a pesquisadora, é que todos os projetos remetem a uma regulamentação para as punições, após a sanção da lei.

Além da complexidade do debate, da superficialidade dos projetos e da falta de transparência para discutir o assunto nos Legislativos estaduais, Rais pontua algo ainda mais grave no fenômeno: é competência privativa da União, segundo o artigo 22 da Constituição, legislar sobre a regulamentação da internet, por se tratar de direito civil. Estados e municípios podem ter competências complementares e exclusivas, observa o professor, mas esse não parece ser o caso dos projetos de lei sobre "fakenews".

"O argumento dos Estados é que a disseminação de 'fakenews' sobre a pandemia se refere a questões sanitárias, saúde pública. Há vários ângulos para olhar para essas legislações. União, Estados e municípios têm o dever de cuidar da saúde pública. Mas, na minha opinião, esses projetos e leis ferem frontalmente a Constituição e isso vai acabar nos tribunais", sentencia o diretor-geral do instituto. O ideal, segundo ele, seria o Supremo Tribunal Federal proibir legislações deste tipo numa súmula vinculante: "Estão legislando sobre internet, e internet é prerrogativa reservada à União. Provavelmente todas essas leis são natimortos jurídicos."

Outro aspecto preocupante da escalada de projetos é que o tema das "fakenews", na opinião de Rais, é um debate que ficou contaminado no governo Bolsonaro. "Essa pauta das 'fakenews' foi tão politizada que regular notícias falsas é como se fosse atacar a pauta de Bolsonaro", justifica. O conteúdo dos projetos é perigoso, alerta Beatriz Moraes, porque nenhum deles explicita quem vai determinar o que é "fakenews", e quem aplica a multa. "Nada é regulamentado, pouquíssimos projetos falam de procedimentos. É extremamente preocupante."

Seguindo essa mesma onda de proliferação, o professor Diogo Rais pontua que já foi criada, inclusive, uma "agência estatal de checagem de 'fakenews'", no Ceará. Segundo o diretor do instituto, é impossível que o Estado possa ser o checador de "fakenews", pelo fato de não ter independência para as checagens. A medida, acrescenta, coloca ainda sob suspeita o sério trabalho feito por agências de checagem profissionais e totalmente independentes.

A pauta das "fakenews" é extremamente relevante, diz Rais, e os governos devem focar em três pilares: prevenção, educação e punição. Projetos de lei devem observar a eficácia e a efetividade de punições, defende. "Toda vez que se pensa em restrição de direito, a medida tem que ser necessária, adequada e deve haver proporcionalidade. Há necessidade de lei para "fakenews", mas essas legislações não são adequadas, simplesmente porque não são efetivas."