O globo, n. 31643, 26/03/2020. Especial Coronavírus, p. 17

 

Ambiente favorável ao vírus

Ludmilla de Lima

26/03/2020

 

 

  Em 300 mil casas do estado, mais de três pessoas dividem um quarto

FABIANO ROCHACaça-vírus. Técnicos de uma empresa contratada pela prefeitura de Niterói fazem sanitização na Vila Ipiranga: medida é para evitar a propagação da Covid-19, que já matou oito pessoas no estado

O distanciamento social e o isolamento recomendados por autoridades públicas de saúde para conter o coronavírus esbarram na realidade das comunidades pobres. Uma pesquisa da ONG Casa Fluminense, com base em dados do IBGE, mostra que cerca de 300 mil domicílios na Região Metropolitana do Rio têm mais de três pessoas dividindo um único quarto.

Com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, Japeri, na Baixada Fluminense, é o município que mais sofre com o chamado adensamento habitacional excessivo: a cidade, 83ª colocada no ranking do IDH do estado, tem 14% (3.956) das residências nesta condição. O estudo aponta que, na capital, a pior situação é a da Favela do Jacarezinho, onde 15,9% dos imóveis —1.803 — se encaixam neste perfil.

Considerando ainda as regiões administrativas do município do Rio, logo atrás do Jacarezinho vêm outras grandes comunidades: Maré, com 11,3% (4.716) dos domicílios; Rocinha, com 11% (2.565); e Cidade de Deus, com 10,9% (1.245). Em toda a cidade, há 128 mil residências onde as famílias enfrentam este problema.

— O IBGE considera que mais de três pessoas por dormitório é excessivo. E há 300 mil domicílios na Região Metropolitana que se encontram nesta situação. Este dado acende um alerta num momento em que se apela para a necessidade de isolamento por causa do risco de contágio. Se houver um processo de disseminação do coronavírus nesses lugares, a propagação será muito mais rápida — diz, preocupado, Henrique Silveira, coordenador-executivo da Casa Fluminense, organização criada em 2013 voltada para a construção de políticas públicas para a redução de desigualdades e desenvolvimento sustentável.

Quando se olha a lista das 22 cidades da Região Metropolitana, é a presença dos municípios da Baixada

Fluminense no topo o que chama mais a atenção. Depois de Japeri, aparecem Belford Roxo (12,4%); Queimados (11,9%); São João de Meriti (11%); Mesquita (10,6%); Duque de Caxias (10,3%); Nova Iguaçu (10,2%); e Magé (9,6%). O Rio está na 17ª colocação, com 6%, e as cidade nas posições mais confortáveis, ou seja, nos últimos lugares, são Petrópolis, com 4,3% (4.093 domicílios), e Niterói, com 3,6% (6.113).

No contexto brasileiro, o estado figura em sétimo lugar, com 353 mil domicílios onde vivem mais de três pessoas num dormitório só, ou 6,7% do total. O Rio de Janeiro só perde para os estados de e Roraima, Amazona, Pará, Acre e Maranhão.

Esse cenário no Rio preocupa diante do avanço da doença. Já são 370 casos no estado, com oito mortos. Só na capital, são 331 pessoas com diagnóstico da Covid-19.

Em Niterói, onde há 19 casos e uma morte, a prefeitura iniciou ontem um processo de sanitização na Vila Ipiranga, no bairro do Fonseca, onde vivem 12 mil moradores. Foi a primeira favela do país a passar por essa higienização que ajuda na eliminação do coronavírus. Respeitando as recomendações de permanecerem em casa, Mônica Souza, de 33 anos, e o pai dela, Manoel Pereira, de 67, acompanharam juntos, de uma das janelas da casa, o trabalho dos 65 profissionais na comunidade.

— Fiquei sabendo pela internet que a comunidade ia ser limpa. Achei muito legal e importante. Estamos apreensivos, principalmente por conta do meu pai. Ele só está em casa, direto, mas eu preciso sair para trabalhar alguns dias —disse Mônica.

DESINFECÇÃO NO RIO

O trabalho de limpeza começa com a lavagem das vias com água e sabão, com auxílio de um caminhão pipa. Em seguida, uma mistura à base de amônia diluída em água é aplicada em calçadas, portões e escadas dos moradores. A empresa responsável, que também fez essa aplicação em Icaraí, utiliza a técnica e o produto adotados pelo governo chinês.

Hoje, no Rio, militares do Exército e da Marinha começam a fazer a desinfecção em estações de transportes públicos a fim de evitar o contágio do coronavírus. O trabalho começa na Central do Brasil e nas estações das barcas da Praça Quinze e do metrô do Estácio.

O Ministério da Saúde anunciou que vai liberar a partir de amanhã 3,4 milhões de unidades do medicamento cloroquina para que os médicos possam avaliar seu uso em pacientes graves infectados pelo novo coronavírus. Foi elaborado um protocolo que prevê cinco dias de tratamento, sempre dentro de hospital e monitorado por um médico, em razão de seus efeitos colaterais. O remédio já é utilizado contra malária, lúpus e artrite.

— O que o Ministério da Saúde está fazendo é deixar no arsenal, deixar à mão do médico. Se ele entender que o paciente grave pode se beneficiar, o que vamos fazer é deixar esse remédio ao alcance dele — disse o ministro Luiz Henrique Mandetta.

O secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Denizar Vianna, destacou que o uso será restrito. Ele disse que, nos casos graves, os benefícios podem superar os riscos.

— Buscamos a literatura científica, identificamos que realmente há uma lacuna de conhecimento, mas, nesse grupo de pacientes, cuja mortalidade pode chegar a 49%, optamos por oferecer, dentro de hospitais, essa alternativa terapêutica —disse Vianna. —Esse medicamento não é indicado para prevenção. Não é indicado para os sintomas leves.

Segundo o Ministério da Saúde, a cloroquina demonstrou ter ação contra o vírus em laboratório. Também há indicação de melhora nos pacientes graves. Por outro lado, a pasta destacou que ainda são necessárias evidências clínicas mais robustas. “A única evidência mostra aparente redução da carga de vírus em secreções respiratórias”, informou o ministério.

No dia 12 deste mês, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgou um informe recomendando que nenhum medicamento, entre eles a cloroquina, seja usado no tratamento de pacientes com Covid-19 até que se tenha evidência científica de sua eficácia e segurança. Ainda de acordo com o comunicado, alguns produtos podem até piorar o estado de saúde do paciente:

“A Sociedade Brasileira de Infectologia recomenda que nenhuma medicação, como lopinavir-ritonavir, cloroquina, interferon, vitamina C, corticoide etc., seja usada para tratamento de pacientes com Covid-19 até que tenhamos evidência científica de sua eficácia e segurança. Algumas delas, como o corticoide, já demonstraram que podem piorar a evolução de outras viroses respiratórias.”

A entidade, no entanto, fez uma ressalva: “Esta recomendação pode mudar à luz de novos conhecimentos científicos, especialmente porque vários estudos clínicos estão em andamento”.

MORTE NOS EUA

Nos Estados Unidos, um homem de 60 anos morreu e sua mulher, da mesma idade, foi hospitalizada no domingo após se medicarem ingerindo uma forma de cloroquina. Estudos publicados em revistas acadêmicas dos EUA, da China e da França apontaram que essa e outras drogas, atualmente usadas no tratamento da malária e de doenças reumatológicas, apresentaram resultados promissores contra o coronavírus, o que gerou uma procura maciça pelos compostos no mundo.

Segundo a National Public Radio, uma organização americana de mídia sem fins lucrativos, o hospital onde o casal ficou internado, em Phoenix, Arizona, informou que o homem e a mulher ingeriram “fosfato de cloroquina, um aditivo comumente usado para limpar tanques de peixes”.

O aditivo para aquário que o casal ingeriu, portanto, não seria o mesmo do medicamento cujo uso é investigado para tratar coronavírus. “Trinta minutos após a ingestão, o casal apresentou efeitos que exigiam internação”, afirma o comunicado do hospital, de acordo com a NPR. Entre os efeitos, náusea e vômitos. O homem morreu de parada cardíaca.

“Dada a incerteza em torno da Covid-19, entendemos que as pessoas estão tentando encontrar formas de prevenir ou tratar esse vírus, mas a automedicação não é a maneira de fazê-lo”, alertou Daniel Brooks, diretor médico do centro de estudos Banner Poison and Drug Information, do hospital no Arizona, à NPR.

Brooks ainda chamou atenção para os perigos da automedicação e disse que é preciso confiar em fontes oficiais, como a Organização Mundial de Saúde e as autoridades estaduais de saúde para aconselhamento médico — “não a internet ou os políticos”.

Na semana passada, assim como o presidente Jair Bolsonaro, Donald Trump, líder americano, destacou a cloroquina e a hidroxicloroquina como compostos promissores para tratamento da Covid-19 e foi criticado por especialistas.

“O que o Ministério da Saúde está fazendo é deixar no arsenal, deixar à mão do médico”

Luiz Henrique Mandetta,

ministro da Saúde