Valor econômico, v.20, n.4999, 13/05/2020. Política, p. A6

 

Vídeo indica que Bolsonaro quis interferir na PF

André Guilherme Vieira

Luísa Martins

13/05/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro voltou a ficar sob pressão em razão de suas declarações vinculando a troca no comando da Polícia Federal (PF) à proteção dos filhos, registradas em vídeo de reunião ministerial ocorrida em 22 de abril e que reforçam acusações feitas por Sergio Moro ao deixar o Ministério da Justiça. O ex-ministro disse que o presidente tentou interferir politicamente na gestão do órgão.

O Valor ouviu três fontes que assistiram à gravação, exibida ontem a investigadores e partes, na PF de Brasília. A peça está sob segredo de Justiça por ordem do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator do inquérito que apura eventual interferência presidencial na PF aberto com base em acusações feitas por Moro.

De acordo com essas fontes, durante a reunião gravada Bolsonaro se alterou e usou palavrões ao dizer que seus familiares e aliados próximos são perseguidos, razão pela qual apontou a necessidade de troca do superintendente da PF do Rio de Janeiro.

"Não vou esperar foderem com alguém da minha família. Troco todo mundo na Segurança [Ministério da Justiça e Segurança Pública], troco chefe, troco ministro". "Chefe" é como o presidente se refere aos superintendentes regionais da PF, que chefiam as unidades policiais federais nos Estados.

Após Moro se demitir, Bolsonaro trocou o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, por Rolando Alexandre de Souza, depois de tentar nomear o atual diretor da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem. A nomeação de Ramagem, amigo da família Bolsonaro, foi impedida por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre Moraes. Rolando trocou o superintendente do Rio. Ele substituiu Carlos Henrique Oliveira por Tacio Muzzi no comando da Polícia Federal fluminense.

O ex-ministro Sergio Moro assistiu ao vídeo em Brasília e comentou com um interlocutor que a fala de Bolsonaro na gravação "é ainda mais contundente do que recordava". Na conversa, o ex-juiz da Lava-Jato de Curitiba afirmou a seu interlocutor que as declarações do presidente "confirmam tudo o que eu disse e, mais do que isso, são devastadoras". No vídeo, Bolsonaro também mencionou um eventual impeachment motivado pelo fato de ele manter em segredo o resultado do exame de covid-19 a que se submeteu.

O presidente teria dito então que não aceitaria sofrer um processo de impeachment "por causa dessa porcaria de exame" e fez questão de ressaltar que é o comandante-em-chefe da Forças Armadas, de acordo com a versão de investigadores que assistiram à gravação.

Na reunião gravada em vídeo, Bolsonaro também faz menção aos governadores de São Paulo, João Doria (PSDB) e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), seus adversários políticos.

Ele se referiu a ambos usando termos chulos, disseram pessoas que assistiram à gravação. Para garantir a integridade do material original, a PF realizou uma espécie de cópia conhecida como "espelhamento" de arquivo.

No mesmo vídeo, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendeu a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal, usando a frase "tem que mandar todo mundo pra cadeia, começando pelo STF", segundo as três fontes que assistiram à gravação da reunião com ministros do governo.

Weintraub mencionou a prisão de ministros do Supremo enquanto fez uma série de críticas a integrantes de Poderes que trabalham em Brasília, segundo os relatos dessas fontes.

O ministro da Educação é alvo de inquérito policial que tramita no STF e no qual se apura se ele cometeu crime de racismo ao postar declarações contra a China em redes sociais.

Nessa mesma gravação, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, disse que é preciso "prender prefeitos e governadores". O contexto da fala da ministra se referiu à medidas de distanciamento social tomadas por Estados no combate à pandemia do coronavírus, disseram essas fontes.

Após a exibição do vídeo, o advogado Rodrigo Sánchez Rios, que representa Sergio Moro, afirmou em nota que o material "confirma integralmente" as declarações prestadas pelo ex-ministro da Justiça à PF no dia 2 de maio. Segundo o advogado, o vídeo "não possui menção a nenhum tema sensível à segurança nacional". A defesa de Moro pleiteia que a gravação seja tornada pública.

O mercado financeiro reagiu negativamente ao vídeo. O câmbio sofreu reviravolta na reta final do pregão de ontem e levou o dólar a um novo recorde de alta, fechando com elevação de 0,86% e chegando à cotação de R$ 5,8691, depois de ter atingido R$ 5,8860 no pior momento de tensão do mercado. (colaborou Lucas Hirata, de São Paulo)

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No arsenal dos quatro inquéritos, ainda está por surgir a 'bala de prata'

Maria Cristina Fernandes

13/05/2020

 

 

A divulgação do vídeo com duas horas de xingamento do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministros mais leais contra autoridades da República tem o potencial de azedar ainda mais suas relações com o Supremo, o Legislativo e os governadores. É cedo, porém, para dizer que as cenas, vistas até agora por meia dúzia de pessoas mas sobre as quais muitos vaticínios já se fazem, seja uma "bala de prata" do inquérito que apura as denúncias do ex-ministro Sergio Moro contra o presidente da República.

Bolsonaro, pelos relatos de quem assistiu o vídeo da reunião do dia 22 de abril, teria demonstrado a intenção de trocar o superintendente da Polícia Federal no Rio para proteger sua família de investigações do órgão. Para um experiente procurador federal, que não joga no time dos engavetadores, a configuração de um crime de advocacia administrativa, ou seja, o patrocínio de um interesse privado por um administrador público, precisa demonstrar a consumação, ou seja, que a troca resultaria em benefício pessoal para o presidente e sua família.

A maior contribuição do vídeo, até aqui, foi tornar mais difícil o pedido de arquivamento do inquérito, atitude que os depoimentos de Moro e do ex-diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, poderiam sugerir. É na continuidade da investigação que provas mais robustas podem vir a surgir.

Há dúvidas se as novas provas do inquérito relatado pelo ministro Celso de Mello surgirão dos depoimentos dos ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil). Os primeiros relatos dos depoimentos confirmam as expectativas de que os ministros protegeriam o presidente. Restam ainda a busca e apreensão do celular do ex-ministro, os relatórios da Polícia Federal e da Abin, além do depoimento do próprio presidente da República. Este ainda dependeria de requisição da Polícia Federal ou do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, mas seus colegas o consideram inevitável.

Das quatro frentes de investigação abertas no Supremo sobre o presidente da República, aquela que os procuradores avaliam como mais comprometedora é a das "fake news" conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes. É um inquérito que, assim como o segundo relatado pelo decano, em relação ao ato em defesa do AI-5, tem potencial de dano à Lei de Segurança Nacional. O caso em mãos do ministro Celso de Mello, porém, refere-se à participação de deputados federais e não ao discurso do presidente da República em frente ao quartel-general do Exército. O de Moraes ainda teria potencial de fazer andar a investigação em curso no Tribunal Superior Eleitoral que comprometeria toda a chapa.

O quarto e mais recente dos processos, que chegou esta semana à Corte, o ministro Ricardo Lewandowski terá que decidir se o presidente deve apresentar seus exames da covid-19. A dúvida dos procuradores não é se a informação, como alega a Advocacia-Geral da União, é privativa do presidente, mas se, num processo criminal como este, originado da Lei de Acesso à Informação, ele seria obrigado a produzir provas contra si mesmo. A situação seria diferente se a investigação nascesse de um dos muitos pedidos de impeachment represados na Câmara que alegam dano à saúde pública a partir das aglomerações promovidas pelo presidente, estivesse, ou não, infectado.

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Presidente disse que temia por sua segurança

Fabio Murakawa

Rafael Bitencourt

13/05/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro negou ontem ter mencionado a Polícia Federal, o superintendente da PF no Rio e as investigações em um vídeo entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF). O material faz parte de inquérito que apura acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, de que Bolsonaro pressionou por mudanças na superintendência da PF no Rio para interferir em investigações e proteger a sua família.

Bolsonaro classificou o vídeo como "última cartada midiática, usando da falácia e da mentira, para achar que eu tentei interferir na PF". O presidente falou com jornalistas durante uma inesperada saída à rampa do Palácio do Planalto, enquanto veículos de comunicação publicavam o vazamento de trechos da filmagem de uma reunião ministerial do dia 22 de abril.

"Não existem no vídeo as palavras 'Polícia Federal' nem 'superintendente'. Não existem as palavras 'superintendente' nem 'Polícia Federal'", reiterou. "Não tem a palavra investigação".

Questionado sobre se havia se referido à sua família, ele remeteu ao atentado a faca que levou em um evento de campanha em Juiz de Fora, em 2018. "A preocupação minha foi, depois da facada, de forma bem direcionada, a segurança minha e da minha família."

O presidente também minimizou os depoimentos de Moro e Maurício Valeixo, chefe da PF exonerado por ele no episódio que levou o ex-ministro da Justiça a pedir demissão. Sobre Alexandre Ramagem, indicado pelo presidente para substituir Valeixo, mas impedido pelo STF de assumir, disse ter "grande simpatia por ele", mas negou haver relação de amizade.

"No momento, estou casado com o Rolando Alexandre. Não vou falar de Ramagem", disse.

Ontem, a Polícia Federal ouviu os ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Braga Netto (Casa Civil) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), em depoimentos separados e simultâneos no Planalto.

O Valor apurou que os policiais insistiram em uma fala de Bolsonaro em que ele disse: "Não vou esperar foderem com alguém da minha família. Troco todo mundo na Segurança, troco ministro".

O Valor apurou que Ramos em seu depoimento disse que Bolsonaro simplesmente quis dizer que tem poder de promover substituições em sua equipe, mas que isso não implica interferência em investigações da PF.

Já Braga Netto afirmou que o presidente falava da segurança pessoal de sua família, a cargo do GSI, segundo o portal "G1".

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Juristas veem crime em ação para troca no comando do Rio

Joice Bacelo

Laura Ignacio

Cristian Klein

13/05/2020

 

 

Se for provado que o presidente Jair Bolsonaro quis trocar o comando da Polícia Federal para evitar que familiares sejam prejudicados, pode-se ter elementos suficientes para caracterização de crime. Segundo juristas, no entanto, a frase que teria sido dita em reunião ministerial do dia 22 de abril, isoladamente, não representa prova definitiva de ato ilegal.

Para o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, a suposta fala de Bolsonaro somada à "preocupação excessiva com a CPI das "fake news", com o depoimento do porteiro onde vive a família dele no Rio no caso Marielle e a influência que os filhos dele têm no chamado gabinete do ódio indicam que "evidentemente o presidente tenta proteger a sua família de investigações criminais". Segundo Dipp, o conjunto desses indícios com depoimento de testemunhas podem caracterizar obstrução de justiça, prevaricação, falta de decoro e tentativa de corrupção ativa.

Dipp compara que na condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não houve nenhuma prova direta. "O conjunto indiciário é um meio de prova. São indícios pré-existentes que podem levar a um processo como: Lula visitou o apartamento, era amigo do dono da empresa, a dona Marisa [esposa de Lula na época] queria fazer uma obra ali", contextualiza o ex-ministro. A condenação de Lula foi confirmada nas três instâncias da Justiça.

Professor de direito constitucional e de direitos humanos da Escola Superior da Advocacia, Flávio Bastos também entende que é preciso olhar sob as duas perspectivas - o que o presidente disse e a forma como ele agiu. O crime de responsabilidade, praticado em razão do exercício do cargo, está previsto no artigo 85 da Constituição Federal e é detalhado pela Lei nº 1.079, de 1950, a chamada Lei do Impeachment.

"Ele dizer, somente, não significa ainda uma situação consumada que levaria à caracterização de um crime de responsabilidade. Mas se tiver adotado um ato efetivo e comprovado, por exemplo, mudar um diretor da Polícia Federal para que a investigação não chegue ao seu filho, estará cabalmente comprovado. Pela Lei 1.079 conjugada com o artigo 85 da Constituição Federal, em tese, ele teria praticado crime de responsabilidade para, por exemplo, obter benefícios pessoais", afirma o professor.

Flávio Bastos ressalta, no entanto, que o impeachment - que seria o ápice desse processo - requer não apenas o preenchimento de requisitos jurídicos. "Requer também o preenchimento de requisitos políticos. E a decisão de desencadear o processo de impeachment cabe ao presidente da Câmara dos Deputados", frisa.

Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), também entende que, se confirmada a informação, o presidente Jair Bolsonaro pode ter incorrido em crime de responsabilidade, "tal como descrito pelo artigo 9º da Lei nº 1.079".

Para o professor de direito administrativo da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Justino de Oliveira, os diálogos da reunião ministerial deixam Bolsonaro numa situação ainda mais complicada para sobreviver ao mandato. "Agora é uma escalada", diz, ao lembrar que vai se formando um "conjunto da obra" de investigações comprometedoras no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), que inclui os inquéritos sobre a disseminação de "fake news" e sobre as manifestações antidemocráticas apoiadas por Bolsonaro. Para o professor, o conteúdo do vídeo tem grande potencial para que o decano da Corte, Celso de Mello, relator do caso e "conhecido por ser extremamente técnico", recomende a abertura de processo que pode levar à cassação.

Oliveira afirma que há caracterização de crime de responsabilidade por quebra de decoro - o que justificaria a abertura de impeachment, com julgamento pelo Senado - e dois crimes comuns, obstrução de Justiça e advocacia administrativa, cujo julgamento ocorre no STF, depois de apresentação de denúncia da Procuradoria-Geral da República e da admissão por pelo menos dois terços da Câmara.

Para o professor da USP, o enquadramento do crime de obstrução de Justiça é mais polêmico. Por um lado, diz, Bolsonaro não conseguiu nomear Alexandre Ramagem, seu preferido à direção-geral da PF, o que foi impedido pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, justamente por causa das denúncias de Moro. Por outro lado, o presidente efetivamente trocou o superintendente do Rio, após a exoneração do ex-ministro da Justiça.

Quanto ao crime de advocacia administrativa, que se baseia em defender o interesse de terceiros utilizando-se do cargo público, Oliveira afirma que está configurado. "Estamos todos estupefatos. Como cidadão, a gente torcia para que não fosse grave. É muito grave, pela fala não só dele, como a de outros integrantes do governo", diz.