O globo, n. 31636, 19/03/2020. Economia, p. 22

 

Ação atrasada e insuficiente

Míriam Leitão

19/03/2020

 

 

O governo está atrasado e sendo insuficiente no combate ao efeito econômico da crise na saúde. A direção está certa, mas a qualidade da resposta tanto na pandemia quanto na economia depende de rapidez. E ainda se perde tempo. Há milhões de informais fora do Cadastro Único e eles precisarão estar na rede de proteção social. O programa anunciado pelo ministro Paulo Guedes ontem pegará só uma parte. É bom que se tenha tomado essa decisão e que seja feita uma previsão de R$ 5 bilhões por mês, durante três meses. As parcelas serão de R $200. Será necessário mais e por mais tempo. A queda da taxa de juros também foi vista como fraca diante do tamanho do problema. O decreto de calamidade foi até o dia 31 de dezembro porque este ano já está perdido. A economia entrará em recessão e o déficit do primário será muito maior do que a meta. À noite, a Câmara aprovou o Estado de Calamidade Pública.

Aquela coletiva ontem era para, enfim, o governo brasileiro falar a mesma linguagem que o país e mostrar que tinha entendido a gravidade da crise. E de novo foi uma comunicação errada. O presidente Jair Bolsonaro estava mais preocupado com suas implicâncias e passou mensagens dúbias sobre a gravidade do vírus. Mesmo com máscara, e dois ministros infectados, ele insistia em usar a palavra “histeria” para a preocupação com os acontecimentos. Isso sem falar na compulsiva distorção dos fatos recentes. Bolsonaro parece que, a cada dia, esquece o que fez e disse no dia anterior.

O ministro Paulo Guedes deu apenas uma informação nova, a confirmação de que haverá um programa para os trabalhadores informais. O problema é como encontrá-los. O pesquisador do Ipea, Marcelo Medeiros, especialista em combate à pobreza disse que será um grande desafio cobrir todos os que precisarão de ajuda.

—O Cadastro Único pega as pessoas que vivem com até meio salário mínimo per capita, tem 70 milhões de pessoas. Dessas, 41 milhões estão no Bolsa Família. Então, o primeiro a fazer é zerar a fila de entrada que já deveria ter sido zerada. O programa Bolsa Família não é de erradicação da pobreza, é de alívio. Cobre 20% da população. Trinta milhões estão fora do Bolsa Família, mas dentro do Cadastro. Com o uso do Cadastro, pegam-se os 30% mais pobres da população. Mas a ajuda terá que chegar no pessoal do meio, que vai até os 50% mais pobres, porque são informais e o desemprego vai aumentar —diz Medeiros.

Será difícil fazer essa transferência, e isso dentro do governo se admite. Se fosse apenas para aumentar o Bolsa Família seria automático, mas criar esse programa temporário atendendo a um novo grupo será mais difícil. A recessão pode ser mais prolongada do que o governo está imaginando. A economia vai cair e terá poucos mecanismos para retomar o crescimento. O ministro Paulo Guedes está sempre repetindo que o país estava decolando. O Brasil foi apanhado nessa crise estagnado pelo terceiro ano, depois de uma terrível recessão,de 2015-2016. Por isso o socorro pode ter que perdurar.

E isso terá que ser feito no meio de uma queda ainda incalculável da receita deste ano. Para se ter uma ideia, o Orçamento fazia a conta de royalties com o petróleo a US$ 58 o barril. A conta foi refeita para US $52 e isso fez cair a previsão de receita em R$ 9 bilhões, mas ontem a commodity estava cotada a US$ 22.

O governo vai gastar muito para segurar setores e terá que ter o cuidado em saber quais deles ajudar e até o formato da ajuda. Ontem o ministro Tarcísio Gomes de Freitas falou que o governo permitirá que as empresas aéreas tenham prazo na devolução de valores pagos pelos passageiros. O problema é que as empresas cobram valores exorbitantes em qualquer remarcação ou desistência. Para ser justo é preciso não dar dinheiro com o chapéu alheio e defender também os consumidores das companhias aéreas.

Na entrevista de ontem, até o ministro Luiz Mandetta, que sempre acerta, estava mais preocupado em tecer loas ao “timoneiro”. Guedes repetiu uma frase que ofende o Congresso e os fatos. “O presidente tirou R$ 5 bilhões da disputa política e deu para a saúde”. Essa transferência foi resultado de uma negociação e ele pode até se informar com seu colega da Saúde, que participou dela. Não foi ato magnânimo de ninguém.

Bolsonaro desafina o tempo todo e demonstra por atos e palavras que não entendeu a dimensão do que está acontecendo, mesmo no dia em que montou o teatro para convencer o país de que ele afinal está agindo.