Valor econômico, v.20, n.4975, 04/04/2020. Brasil, p. A5

 

Entrevista - Pereira Júnior 

Maria Cristina Fernandes

04/04/2020

 

 

Foi nas academias militares que o general Adriano Pereira Júnior descobriu o significado de grotão, mas foi em Curupá, distrito do município de Alto Parnaíba, na divisa entre Maranhão e Piauí, que a palavra ganhou vida. Depois de um acesso por trilha, encontrou um povoado com 20 casas, de madeira ou taipa, onde as famílias vivem de subsistência, sem escola, posto de saúde ou mesmo veículos para transportar doentes.

Comandante Militar do Leste entre 2010 e 2012, foi como secretário nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração Nacional (hoje Desenvolvimento Regional), entre 2013 e 2016, que o general ampliou o radar sobre os grotões.

Na reserva desde 2014 e longe de cargos públicos há quatro anos, Pereira Júnior continuou a visitá-los em suas expedições em veículos com tração em quatro rodas, rodando mais de 20 mil quilômetros por ano.

Foi com essa lente que o general se debruçou sobre as medidas governamentais, da União, Estados e municípios para concluir que o combate ao coronavírus no Brasil começou a ser feito para mitigar a doença nos municípios onde já há casos e esqueceu da prevenção naqueles que ainda não foram atingidos.

Testou a população e não deu positivo, isola e deixa a cidade funcionar normalmente”

De seu apartamento, em Brasília, do qual não sai há três semanas, na estrita observância do confinamento, o general de 72 anos falou, por telefone, ao Valor: “São mais de 5 mil municípios sem casos e que assim têm que continuar, porque a dificuldade de combater a doença nesses lugares, em que falta hospital, ou até mesmo, um posto de saúde é gigantesca”, afirmou.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Como o senhor vê os riscos de o coronavírus chegar ao grotão?

Adriano Pereira Júnior: Com preocupação. Ao contrário dos países europeus, o Brasil tem imensa extensão territorial e, com exceção de algumas áreas, as cidades ficam afastadas por distâncias superiores a cem quilômetros. Tenho estudado as medidas e não tenho visto ações que levem isso em consideração na montagem nas estratégias de combate para impedir seu avanço em áreas limpas. A China manteve a restrição do vírus apenas à província de Hubei, adotando medidas que contiveram a propagação da doença. O Brasil já tem casos de contaminação em todos os Estados. A epidemia já atingiu um patamar que não permite, em nível estadual, adotar medidas de contenção. O mesmo não acontece nos municípios. Há 5.131 municípios que ainda não foram atingidos pela pandemia. São mais de 100 milhões de brasileiros que vivem em áreas sem a presença de coronavírus. No mapa das ocorrências, a maioria está concentrada nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste, sendo que há uma imensa área com muito poucas ocorrências.

Valor: E o que precisaria ser feito para evitar que essas regiões fossem atingidas?

Pereira Júnior: Tenho escutado muito que no Brasil já perdemos a oportunidade de adotar medidas de contenção e por isso temos que empregar as de mitigação. Que Brasil perdeu a oportunidade? Nosso país tem uma diversidade muito grande, é a soma de vários brasis. A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que a primeira fase deve ser marcada pela contenção, para evitar que o vírus entre e se espalhe na comunidade. O Brasil já está na fase seguinte, da mitigação, que é adotada quando o país já tem transmissão comunitária, mas há mais de 5 mil municípios em que não há casos da doença e estão esquecidos. O que é menos doloroso, fazer o isolamento de pessoas em suas residências ou isolá-las no perímetro de seus municípios?

Se houve incompetência na contenção nos grandes municípios, essa inépcia não deve se espalhar para os pequenos”

Valor: O dinheiro curto não justifica a prioridade para as regiões mais densamente povoadas?

Pereira Júnior: Mas são medidas baratas que esses municípios necessitam, bloqueios e kits para testes, justamente para evitar que a doença se espalhe por municípios sem rede hospitalar e acabe sobrecarregando o sistema de saúde dos grandes centros do país. Se já está difícil cuidar dos residentes nos municípios infectados, podemos imaginar as dificuldades com que nos defrontaremos se forem adicionados a uma situação de risco mais 100 milhões de pessoas que vivem naqueles que ainda não têm casos registrados. Pegue o Estado de Goiás, por exemplo. Talvez os dados já tenham mudado, mas no último balanço que vi, o Estado tem 12 municípios que abrigam 3,6 milhões de pessoas com casos notificados e 234 municípios que somam uma população de 3,4 milhões sem notificações. Se o vírus se espalhar para todo o seu território, o governador terá não mais de se preocupar com 12, mas com todos os 246 municípios e 7 milhões de pessoas.

Valor: O fato de serem comunidades mais isoladas não acaba servindo de barreira de proteção?

Pereira Júnior: Se as cidades de pequeno e médio porte das quais esses povoados são dependentes não tiverem a covid-19, a doença não chegará lá. Mas se tiverem, vai se espalhar nos grotões com certeza. E pode dizimar muitas comunidades remotas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste em que o acesso, principalmente em período de chuva, fica intransitável.

Valor: Mas os governadores não estão bloqueando estradas?

Pereira Júnior: Os bloqueios são mais interestaduais do que entre os municípios. E também tem que fazer testes. Testou a população e não deu positivo, isola e deixa a cidade funcionar normalmente. Realidades diferentes exigem abordagens distintas. São Paulo tem 645 municípios e 45 milhões de habitantes em uma área de 248 mil quilômetros quadrados, com intensa mobilidade social e econômica entre seus municípios e 1.517 casos de contaminação com 113 óbitos. O Mato Grosso tem 141 municípios e uma população de 3,5 milhões numa área de 903 mil quilômetros quadrados com baixa mobilidade entre os municípios e 18 casos registrados. São realidades completamente diferentes. No caso de Mato Grosso tem que se pensar em estratégias para isolar pessoas nos quatro municípios afetados e estratégias para isolar o vírus, evitando que ameace a vida dos habitantes dos 137 municípios que ainda estão livres da contaminação.

Valor: O bate-cabeça no governo federal não prejudica?

Pereira Júnior: Falta uma ação coordenada, mas o problema não é só o presidente. O que restringe a atividade econômica são as medidas de mitigação, mas se você faz a contenção nem vai ter o que mitigar. As cidades vão poder funcionar normalmente. As autoridades locais se preocupam mais em preparar hospitais do que em prevenir que mais gente precise deles.

Valor: Massificar os testes exigiria um investimento muito grande. A muito custo, o Ministério da Saúde conseguiu comprar 500 mil kits. Não é inviável enviar testes para 5.570 municípios?

Pereira Júnior: A pergunta que tem que ser feita é se não é inviável arrumar leitos hospitalares para municípios ainda livres do vírus onde moram mais de 100 milhões de brasileiros. Basta olhar para as dificuldades que enfrentamos hoje, para aumentar a capacidade de atendimento dos hospitais em leitos de UTI e de respiradores. Se a contaminação não for contida, os municípios que serão atingidos são os mais carentes de instalações hospitalares e de profissionais da área médica. Como vamos atender essa demanda? Serão trazidos para os grandes centros? Haverá disponibilidade suficiente na rede hospitalar e nos hospitais de campanha instalados pelos governadores nas capitais? Serão instalados hospitais de campanha nos novos municípios? Teremos equipamentos e pessoal, médicos e enfermeiros, suficientes para trabalharem nessas áreas? Se houve incompetência na contenção nos grandes municípios, essa inépcia não deve se espalhar para os pequenos. Ainda dá tempo.