Valor econômico, v.20, n.4978, 10/04/2020. Brasil, p. A6

 

Além da recessão, país deverá superar as desigualdades

Glauce Cavalcanti 

Lucila Soares

Rennan Setti

10/04/2020

 

 

O Brasil que sairá da crise do coronavírus terá que vencer uma recessão profunda e duradoura sob cenário externo adverso e missão fiscal redobrada. Será preciso fugir à tentação de transformar em permanentes os gastos emergenciais que a pandemia exige, mas superando as deficiências em matéria de saúde, saneamento e inclusão que ela escancara. O desafio extrapola, porém, os limites da economia, exigindo transformações no próprio tecido social: empresas mais solidárias; uma classe política mais madura e aberta ao diálogo; um país menos desigual.

Essa é a rota traçada no seminário “E agora, Brasil?”, que reuniu esta semana em debate virtual o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, a economista Zeina Latif e Luiza Helena Trajano, presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza. O evento foi realizado pelos jornais “O Globo” e Valor, com patrocínio do Sistema Comércio através da CNC, do Sesc, do Senac e de suas federações.

Zeina Latif: “Não somos uma sociedade coesa, que olha para o próximo” 

Segundo Zeina, as discussões sobre o futuro partem de passos em falso no passado. A crise ressalta mazelas de um país desigual, com saneamento escasso e informalidade que abarca 40% dos trabalhadores, dificultando a implementação de medidas de socorro. O próprio Mansueto admite que levar o auxílio emergencial de R$ 600 à população será “um esforço de guerra”.

Para piorar, diz Zeina, o Brasil repetiu e potencializou os erros de seus pares ocidentais na reação à pandemia. Ignorou alertas externos e internos e levou semanas para impor isolamento. “O Ocidente inteiro errou, tirou poucas lições do que acontecia no Oriente. Mas o Brasil errou mais, elevando o custo econômico e dificultando a definição de estratégias”.

Mansueto Almeida: “esforço de guerra” para distribuir auxílio emergencial 

O custo econômico vai ser alto, prevê ela. A parada foi brusca, terá consequências duradouras e será agravada por um mundo mais fechado. Mas a consultora defende que, além de medidas econômicas, mudanças sociais serão necessárias: “Não somos uma sociedade coesa, que olha para o próximo. O sentimento de solidariedade tem que perpassar nossas relações. Eliminar oportunismos é uma forma de garantir uma transição melhor do isolamento, porque o movimento não será tranquilo.”

Para Mansueto, uma lição desta crise é a necessidade das reformas. Foi graças àquelas já feitas que “não sairemos quebrados desta crise”, observa, citando a importância dos juros baixos para financiar um déficit temporariamente maior do setor público, podendo chegar a R$ 500 bilhões este ano.

Luiza Trajano: “A crise do governo Collor foi 20% do que vivemos hoje” 

Afinal, diz o secretário, o envelhecimento rápido da população brasileira exigirá mais gastos com o Sistema Único de Saúde (SUS), que já não corresponde às necessidades. Ele defende mudanças constitucionais para tornar esse investimento mais eficiente, como a retirada de percentuais mínimos de investimento, que, apesar de meritórios, criam uma amarra.

Mas Mansueto concorda com Zeina que a atual crise reforça a necessidade de maturidade política e solidariedade social: “Além de reformas, vamos precisar de muito diálogo e solidariedade. Depois da Segunda Guerra, os países se reconstruíram e montaram uma rede de assistência social. Como não faremos no século XXI?”

Esta crise, de fato, coloca as outras em perspectiva. “Ninguém pensou que um dia a gente viveria algo parecido. A crise do governo Collor foi 20% do que vivemos hoje”, comenta Luiza Trajano, que era diretora executiva do Magazine Luiza em 1990, quando o governo confiscou as cadernetas de poupança dos brasileiros.

Se a turbulência atual é inédita, também são novas as ferramentas para fazer frente a ela. O Magazine Luiza adotou estratégias para aprofundar a digitalização do negócio. “Temos de buscar saídas. Lógico que vamos voltar, mas não vamos ser os mesmos. Nada vai ser o mesmo. Veja os nossos custos fixos hoje. Cortamos tudo o que dava para cortar que não sejam pessoas, e vimos como vender o máximo pela internet”, conta Luiza.

Mas Leandro Domingos Teixeira Pinto, vice-presidente financeiro da Confederação Nacional do Comércio (CNC), pondera que as empresas não conseguirão se reinventar sozinhas: “Se uma empresa não tiver recursos, não adianta ter inovação. As empresas precisam deles para atravessar este período de transição, e os governos federal e estaduais precisam oferecer apoio concreto”.

Para a colunista do Globo Míriam Leitão, uma das mediadoras do debate, a crise do coronavírus é aquela que vai passar o país a limpo. “ Vamos pensar no que a gente fez e nos ajudou, como adotar a democracia, acabar com a inflação e ter contas públicas transparentes. Mas também no que não fizemos e vamos ter que fazer. Ao longo dos anos, o governo deixou muita gente para trás.”