O globo, n. 31661, 13/04/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Entrevista - Julio Croda: "Politização desviou foco do combate à covid-19"

Ana Lucia Azevedo

13/04/2020

 

 

Membro do Centro de Contingência contra o vírus de SP, especialista alerta para a ‘imensa desigualdade’ que agrava o quadro da doença no Brasil

Conhecido por suas pesquisas em epidemias, o infectologista e pesquisador da Fiocruz Julio Croda integra o grupo do Centro de Contingência do Coronavírus do Estado de São Paulo e avalia o impacto da redução do isolamento social no aumento de casos de Covid-19. Croda deixou em março o cargo de diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde por discordar da politização que, a seu ver, tirou o foco do combate da epidemia.

Qual o cenário para as próximas semanas?

É muito ruim. O coronavírus começou a se espalhar pelas comunidades carentes, que dependem exclusivamente do SUS. E os leitos de UTI estão concentrados no setor privado. Quando olhamos a distribuição de leitos de UTI nos municípios, vemos a imensa desigualdade. Desconhecemos a situação real da Covid-19 no Brasil, muitos dos mortos nem sequer foram testados. Os números são subdimensionados. Estamos testando muito pouco, e isso causa distorções.

Quais?

Por exemplo, a taxa de mortalidade. Só testamos mortos e doentes graves. Claro que entre eles a taxa de letalidade será elevada. E, mesmo nesse grupo, testamos pouco. E há disparidades entre os estados, números que não informam a realidade devido à falta de testes. Pernambuco tem uma taxa de mortalidade de 10%, brutal. Em São Paulo, está na faixa dos 7%, também muito alta. Não foi o vírus que mudou nesses estados e ficou mais letal. A amostragem é ruim por falta detestes. O Reino Unido, por exemplo,j ás abeque até agora 15% de sua população testou positivo, e com isso pode pensar na melhor estratégia para deter o coronavírus. Aqui não temos qualquer dado nesse sentido.

Quando isso deve mudar?

O Ministério da Saúde disse esperar solucionar esse problema nas próximas semanas. Existe uma mensagem do governo de que a Fiocruz vai começar a produzir mais testes.

Por que o Brasil testa tão pouco?

Porque perdeu tempo. O Brasil teve tempo de se preparar. Mas houve politização da pandemia e isso prejudicou demais o país. O Brasil está na última região do mundo a ser atingida pela pandemia. Teve tempo. Tivemos quatro meses para nos preparar, desde os primeiros casos na China. Mas não conseguimos fazer isso porque a politização prejudicou o combate à Covid-19, nos atrasou muito.

Como a politização atrasou o combate ao coronavírus no Brasil?

Ela desviou o foco do que funciona e é fundamental para questões menores e sem base em fatos científicos. Perdemos um tempo enorme discutindo, por exemplo, se cloroquina funciona ou não. Cloroquina não vai resolver o problema. O que vai deter o coronavírus é isolamento social, testagem em massa e ter leitos de UTI suficientes para todos. A população não está discutindo se terá leitos caso adoeça, se haverá testes. Não, ela está falando de cloroquina, uma droga para a qual ainda faltam provas de segurança e eficiência. Desviar o foco do que funciona, o isolamento, os testes e as UTIs, é condenar nossa população ao sofrimento.

Por que o senhor deixou o Ministério da Saúde?

Não saí por causa do ministro Luiz Henrique Mandetta, ele é muito técnico, age corretamente, procura tomar decisões com base em conhecimento científico. Mas não embarquei em concessões políticas. Eu sou um cientista, um técnico, tenho uma carreira científica a zelar. Saí quando vislumbrei que o caminho de combate da Covid-19 seria prejudicado pela Presidência.

Considerei que o Brasil será prejudicado sem uma resposta unificada, tomada sem pensar em política, em eleição. Saí no momento oportuno. É preciso despolitizar a luta contra o coronavírus e pensar de forma técnica.

Quando a epidemia deve chegar ao pico no Brasil?

A epidemia não está afetando os estados da mesma maneira. Há diferenças em função do início do espalhamento, da rede de saúde, de características de cada estado. Manaus, no Amazonas, está quase no limite da capacidade de atendimento. O pico depende do isolamento social.

Como assim?

Se o governo determina medidas de contenção e a população respeita, não há pico. Há um platô, um achatamento da curva de subida de casos. Nesse platô há muitos casos, mas é possível para a rede de saúde atender. Quanto maiores forem as medidas de intervenção e de isolamento, maior será o achatamento da curva.

E o isolamento tem dado resultado?

Sim. Mas algumas cidades respondem melhor do que outras. O isolamento funcionou, tivemos um achatamento da curva. Mas isso teve também um efeito perverso.

Qual?

A população vê que não estão faltando leitos e pensa que a situação é tranquila. É uma ilusão extremamente perigosa porque só funciona porque há isolamento. Na medida em que ele enfraquece, o coronavírus se espalha e voltamos ao risco de ter um pico e o colapso da rede. A comunicação de risco é extremamente complicada, as pessoas muitas vezes entendem errado a mensagem. O resultado é que a população tem uma falsa sensação de segurança.

O que vai acontecer se sairmos do isolamento social?

A capacidade de contágio do coronavírus é o dobro da dos vírus influenza (gripe). Se as pessoas saírem do isolamento agora, em 30 dias teremos uma explosão de casos, todo o esforço terá sido em vão e vamos ser uma Itália. O impacto da movimentação não se vê em uma semana, leva cerca de um mês.

O que vai acontecer?

Vamos ter cidades sem leitos e pessoas morrendo na porta dos hospitais, uma situação totalmente sem controle. E isso vai impactar muito mais a economia do que manter o isolamento social agora.

O senhor está trabalhando agora na avaliação do isolamento social. Como ela é feita?

Teremos nesta semana os resultados de um trabalho que monitora a mobilidade da população com dados de telefonia móvel e a relaciona a casos da doença.

Como está a situação da contaminação de profissionais de saúde?

Vejo com muita preocupação porque eles estão se contaminando, adoecendo e ficando fora de combate. Os hospitais são enormes fontes de contaminação e o país enfrenta a Covid-19 num cenário que já era ruim. O Brasil tem um dos maiores índices de infecção hospitalar do mundo, com alta contaminação por bactérias resistentes. Em muitos hospitais brasileiros, os profissionais nunca receberam um EPI, um artigo de luxo.